Nelson Domingos: “O racismo em Angola apresenta-se de forma velada”

Nelson Domingos: “O racismo em Angola apresenta-se de forma velada”

A ideia é problematizar estas questões, que são invisibilizadas, pois à medida que as problematizamos, retiramos-lhes a sua invisibilidade e conseguimos discutir, reflectir sobre elas e podemos construir uma sociedade mais justa e digna.

Quando recebi o convite do Domingos da Cruz para escrever um capítulo sobre racismo, achei bastante desafiador pois desconheço em grande quantidade obras, ou pelo menos, discussões na nossa esfera pública ou até publicações científicas e debates na nossa academia que reflictam sobre a temática do racismo. Achei esta iniciativa bastante ousada, aceitei e produzimos o texto fazendo um recorte específico. Eu fiquei muito tempo fora do país e, ao voltar, algumas questões sobre a percepção dos jovens em relação ao racismo inquietaram-me muito e algumas destas questões acabaram por se reflectir neste capítulo. O livro foi organizado pelo Domingos da Cruz, ele escreve o primeiro capítulo, o segundo capítulo escrevi em parceria com a Mericlene, e o terceiro capítulo foi escrito pela Poliana e pelo Marcelo. Queria cingir-me tão-somente ao capítulo que escrevemos e chamar atenção para alguns aspectos, sobre os demais vocês vão comprar o livro e fazer a leitura.

Qual era a finalidade? A finalidade era, exactamente, analisar a percepção dos jovens angolanos residentes em Luanda sobre o racismo, mas partimos de uma hipótese: a sociedade angolana está estruturada de forma velada para assegurar os privilégios de um certo grupo de pessoas em função das características morfológicas.

Isto é, quanto mais clara for a tonalidade da pele, maior é o acesso aos benefícios e privilégios, quanto mais escura, menor é o acesso aos benefícios e privilégios. Para tal decidimos ir até ao campo e escolhemos cerca de 20 jovens de forma aleatória e procuramos entender qual a sua percepção em relação ao racismo.

O texto inicia-se com algumas discussões conceptuais. Quando falamos de racismo, falamos de uma palavra que resulta da conjugação de dois termos, um é ‘raça’ e outro é o sufixo ─ ismo. A ideia de raça trouxe a percepção de que um grupo de indivíduos são dotados de certas características morfológicas semelhantes, no caso do ser humano está associada às características da cor da pele, características ligadas ao formato do rosto, cabeça, do tipo de cabelo, etc. Já o sufixo ─ ismo, geralmente, está presente em algumas palavras para formar certos princípios, daí encontrarmos presentes os ismos, nos princípios filosóficos, políticos, económicos e científicos, como, por exemplo, marxismo e várias outras terminologias. Trago aqui, então, pelo menos dois conceitos de racismo, um apresentado no dicionário do Nicola Abbagnano, em que se diz que o racismo é uma doutrina segundo a qual todas as manifestações históricas e sociais do homem e os seus valores ou desvalores dependem da raça. Segundo essa doutrina existe uma raça superior, ariana ou nórdica que se destina a dirigir o género humano, ou seja, a raça ariana é aquela que dirige todas as outras raças. Segundo este conceito, por outras palavras, já direcionadas em Mateus e Norberto Bobbio, a raça está ligada à referência do comportamento do indivíduo em relação à raça a que pertence e, principalmente, do uso político de alguns resultados aparentemente científicos para fazer acreditar na superioridade de uma raça sobre as demais. Este uso vai justificar e trazer atitudes de discriminação contra as raças que são consideradas como sendo inferiores. A partir destes “conceitos científicos” que foram construídos, ou pseudo conceitos, justificou-se a existência de uma certa hierarquia segundo a qual a “raça ariana” estaria no “topo da pirâmide”, a seguir os mulatos (o próprio conceito mulato também suscita uma longa discussão) e por fim os negros.

Outro aspecto que nos chama à atenção nesta discussão, é que o racismo em Angola apresenta-se de forma velada, mas também incutida de forma institucional e estrutural. Quando nos referimos ao racismo institucional, este está associado aos privilégios assegurados a um grupo de indivíduos, em função da sua constituição morfológica e a falta de acesso a esses mesmos benefícios e privilégios por um outro grupo, em função da ausência, ou de estar desprovido desse conjunto de atributos. Afirmamos que a sociedade angolana está estruturada de forma velada com o chamado racismo estrutural. O racismo estrutural é de alguma forma naturalizado, os indivíduos aceitam-no de forma pacífica e de forma acrítica. Nós fomos para o campo procurar ouvir o que esse grupo de jovem pensa acerca do racismo.

Vou fazer aqui a leitura de algumas questões que foram levantadas aos jovens, e as respostas mais interessantes. Quando questionados sobre a existência de privilégios em Angola, em função da cor de pele, temos aqui algumas respostas interessantes, um deles responde o seguinte: “Ainda temos um complexo de inferioridade muito grande, onde os que têm uma cor mais clara têm vantagem no emprego”. Isto é interessante porque a primeira questão que me moveu a desenvolver a pesquisa era focar em instituições bancárias. Uma das questões que mais me inquietava é que nas instituições bancárias são pessoas com a pele muito mais clara que estão nos postos de gerência, e isso fica claro quando os entrevistados trazem o aspeto do emprego como centro do privilégio e manutenção do status-quo. O segundo entrevistado disse que, “infelizmente no nosso país ainda têm complexo de superioridade quanto a este assunto, acham que por serem brancos são mais inteligentes que os negros”, chama atenção, novamente, quanto mais clara for a cor da pele melhor é a inteligência e quanto mais escura a cor da pele menor é a inteligência, uma correlação que está estabelecida enquadrando perfeitamente o racismo estrutural e também institucional. Outro diz: “é só olhar para instituições e verás onde eles são a maioria”. E outro: “os mulatos e os brancos acabam por ter um certo privilégio em Angola”, e por fim, “a maioria dos mulatos consegue ter trabalho com mais facilidade sendo formado ou não”. Essa é a percepção do grupo de entrevistados em relação à existência do racismo, ou não em Angola.

Também me tem chamado à atenção a relação entre o acesso a certos benefícios e privilégios, em função da cor da pele e que leva os indivíduos a terem certas atitudes de forma a serem aceites. Trago aqui pelo menos três conceitos. Primeiro, o conceito de auto-embranquecimento; segundo, o conceito de embranquecimento geracional e o terceiro, o conceito de embranquecimento conjugal.

O auto-embranquecimento, tem a ver com o indivíduo não-branco assumir uma cor de pele que de facto não possui, mais clara, ou procurar adoptar comportamento similares a indivíduos não-negros. Passa também por negar a sua origem ancestral e o recurso a métodos, químicos ou tecnológicos, para o clareamento da pele.

O embranquecimento geracional refere-se ao indivíduo de pele escura procurar despojar um cônjuge de pele mais clara com a finalidade de gerar filhos com pele mais clara. Ao voltar a Angola, isso chamou-me muito a atenção, e no seio familiar ouvi muitas vezes dizer “quando é que terás filhos? Nós queremos clarear a família”. Muitos de nós já ouvimos essas expressões, é exactamente racismo estrutural.

O embranquecimento conjugal, seria o desejo de despojar um cônjuge de pele mais clara a fim de assegurar o status social.

Um outro aspecto que nos chama à atenção dentro deste processo de autonegação está ligado a algumas práticas que estão incutidas em algumas das nossas famílias. Não sei se já ouviram falar, ou já acompanharam casos, em que mães colocam molas no nariz, ou aquecem um pano e fazem um processo de afinamento do nariz do bebé. Isto faz parte do processo de autonegação, o bebé tem de ter um nariz com um formato de alguém que se enquadre num perfil de não negro.

Podemos também referir como, na década de 70/80, os produtos de clareamento de pele estavam muito mais presentes no seio dos retornados que faziam muito mais uso destes produtos. Hoje isso está disseminado, não está restrito apenas aos descendentes daquele grupo, aos nossos irmãos oriundos da RDC.

Hoje, o processo é tão cruel que esta discussão não pode ser vista sem a análise da perspectiva capitalista. Esta produz  um ideal de ser humano, uma ideia de ser humano que pode ser alcançado por meio de um produto de clareamento de pele, um ideal de ser humano que pode ser alcançado por meio de implantes, por meio de cirurgias plásticas que vão afinar o nariz, que vão esticar os olhos um conjunto de características para construir este indivíduo ideal. Por detrás disto há toda a indústria capitalista que lucra vendendo uma imagem dum ser humano ideal, isto está muito ligado ao processo de autonegação que não pode ser dissociado da autoestima.

Conheci um pastor no Brasil e o livro dele é citado aqui, e ele começa perguntando que histórias te contaram? A nossa autoestima está muito ligada às histórias que ouvimos a nosso respeito e dos nossos ancestrais. Quando olhamos, por exemplo, para a TV, qual é a imagem que aparece do negro e que se vai repercutir na nossa autoestima?

É o negro escravo, é o negro que aparece como serviçal, e nos filmes de desporto sobretudo de box. Se o pugilista for branco, o alvo a ser abatido geralmente é um negro musculado, tido como desprovido de grandes capacidades intelectuais. O negro geralmente é reproduzido em vários filmes como o homem forte desprovido de inteligência intelectual. Isso é tão sério que me remete a um episódio caricato no Brasil. Participei de um manual de filosofia do ensino médio no Brasil. Escrevi dois capítulos, um sobre Hobbes e outro sobre Russell, e decidimos convidar um jovem do ensino médio para fazer um desenho desses filósofos. O livro foi prefaciado por um filósofo renomado no Brasil e quando me foi apresentado a ele perguntou: ─ este é o que fez o desenho? Sendo eu um negro, no livro caberia apenas fazer o desenho, não teria capacidade de escrever um ou dois capítulos do livro!

Voltemos para Angola. Um dos aspectos para o qual os nossos entrevistados chamam atenção tem a ver exactamente com a questão da própria auto-rejeição, quando lhes perguntei se em algum momento tiveram vontade de terem nascido brancos. Aí temos algumas respostas interessantes, um deles diz, “já tive esse sentimento de ser branco para a realização de alguns desejos”. Isto é revelador de que, para alcançar certos desejos, é necessário ser desprovido da própria cor negra. “Às vezes por causa das oportunidades que eles têm sobre tudo no mercado de trabalho”; “Já sim pelo facto de terem abertura no ingresso dos concursos públicos, empregos e situações similares”. E por fim, “já senti muita vontade de ser branco ou mulato pelos privilégios que às vezes têm, as pessoas gostam muito de gente com esse tipo de cor ou raça”.

Para terminar, perguntei-lhes, também, se não gostariam de ter filhos, ou casar, com pessoas de pele mais clara. Vou citar apenas uma das entrevistas, a um jovem de 21 anos, negro, estudante universitário que disse: “Sempre gostei de namorar mulheres mulatas não só pelo simples facto de ter filhos mulatos, mas porque me transmitem uma certa atracção, sempre fui atraído pelas mulheres mulatas”. Às vezes não discutimos estas questões, e o propósito, na verdade, deste livro não é criar polémica. A ideia é problematizar estas questões, que são invisibilizadas, pois à medida que as problematizamos, retiramos-lhes a sua invisibilidade e conseguimos discutir, reflectir sobre elas e podemos construir uma sociedade mais justa e digna.

Muito obrigado!

Nota: Transcrição integral da apresentação do livro «Racismo – Machado Afiado em Angola».

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2 Comentários

  1. Calson Lamba

    Parabéns pela análise e bem trazida de quase todas vertentes incluindo a percepção dos jovens sobre o assunto. Faltou trazer do ponto de vista da geração pós colonial, nossos pais como eles vejam esta problemática. Será que tudo isso tem origem da nossa própria colonização assim como a problemática do negar as raízes da negritude.

  2. José Kalunsiewo Nkosi

    Análise interessante, pois dificilmente alguém que vive em Angola negaria a existência de práticas racistas no cotidiano angolano, mas, por outro lado, raramente essa questão é levada à tona. Como bem frisou o professor Nelson Domingos, mesmo nos círculos académicos nacionais, raramente é abordada com profundidade essa questão. É necessário tratar essa problemática com a transparência e seriedade que merece a fim de melhorar nossas relações sociais sem complexos – de superioridade ou inferioridade – a fim de vivermos mais harmoniosamente.
    José Kalunsiewo Nkosi

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