OS DIREITOS DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO EM ANGOLA

OS DIREITOS DE REUNIÃO E DE MANIFESTAÇÃO EM ANGOLA

“Diz-me que liberdade de reunião e de manifestação praticas no teu país e dir-te-ei que democracia alcançaste”. – António Francisco de Souza.

Nelson Domingos António* ǀ A origem do direito de reunião e do direito de manifestação tem sido legada ao movimento iluminista do século XVIII. Os ideais iluministas preconizavam a consagração formal das liberdades individuais e dos direitos civis e políticos, dentre os quais figuram o direito de reunião e o direito de manifestação. Estes, integram os chamados direitos de primeira geração ou dimensão e visam limitar a acção arbitrária do Estado contra os cidadãos. Por esta razão, são denonimados de direitos negativos, porquanto exigem que o Estado se abstenha de práticas arbitrárias contra os cidadãos. (Castilho, 2013: 175-176)

Estes direitos foram consagrados em declarações e pactos internacionais e regionais, e plasmados nas constituições e normas infraconstitucionais dos Estados. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, em seu artigo 20.˚, n.˚1, assevera que  “Todo ser humano tem direito à liberdade de reunião e associação pacífica.” Por sua vez, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos estatui no artigo 21.˚ que:

É reconhecido o direito de reunião pacífica. O exercício deste direito só pode ser objecto de restrições, previstas na lei, necessárias numa sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, da segurança pública ou da ordem pública ou para proteger a saúde e a moral públicas ou os direitos e liberdades de outrem.

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, em seu artigo 11.˚, por semelhante modo, preconiza que:

Toda pessoa tem direito de se reunir livremente com outras pessoas. Este direito exerce-se sob a única reserva das restrições necessárias estabelecidas pelas leis e regulamentos, nomeadamente no interesse da segurança nacional, da segurança de outrem, da saúde, da moral ou dos direitos e liberdades das pessoas.

Estes instrumentos internacionais e regionais subsumem o direito de manifestação ao direito de reunião. Trata-se, segundo Canotilho (1993: 641-642), de concorrência de direitos, mais propriamente de acumulação de direitos. Neste sentido, José Afonso da Silva (2005: 264-265) entende que:

Incluem-se no conceito de reunião as passeatas e manifestações nos logradouros públicos, as quais são ajuntamentos de pessoas que se produzem em certas circunstâncias, para exprimir uma vontade colectiva ou sentimentos comuns, como a celebração de uma festa, a comemoração de um acontecimento, a expressão de uma homenagem ou de uma reivindicação, de um protesto, notando-se que a ideia e os sentimentos desses aglomerados se conhecem pelas insígnias, por cartazes, bandeirolas, gritos e cantos.

É imperativo, portanto, distinguir o direito de reunião e o direito de manifestação. O direito de reunião é um direito público subjectivo que demanda a liberdade para a organização, convocação e participação dos indivíduos na discussão e expressão das suas ideias (Moraes, 2014:82). Trata-se do direito de qualquer grupo formado em um dado momento com o fim de trocar ideias ou de receber manifestação de pensamento político, filosófico, religioso, científico ou artístico (Silva, 2005:264). O direito de manifestação, por seu turno, pressupõe o direito de alguém se manifestar sem impedimento e sem necessidade de autorização prévia, o direito de não ser perturbado, por outrem, no exercício desse direito, devendo o Estado tomar as medidas de protecção adequadas para salvaguardar o livre exercício desse direito e, ainda, o direito de utilização de locais e vias públicas sem outras limitações que não sejam as decorrentes da salvaguarda de outros direitos fundamentais com os quais colidam (Araújo & Nunes, 2014:336-337).

A Constituição da República de Angola versa no mesmo artigo 47.º sobre o direito de reunião e o direito de manifestação. O exercício destes direitos deve ser pacífico e sem armas, e dispensa a necessidade de autorização, porém demanda a prévia comunicação à autoridade competente. Por semelhante modo, a Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação (Lei n.⁰ 16/91 de 11 de Maio), em seu artigo 2.°, define reunião e manifestação como sendo  

(…) o agrupamento temporário de pessoas, organizado e não institucionalizado destinado à troca de ideias sobre assuntos de natureza diversa, nomeadamente, políticos, sociais ou de interesse público ou a quaisquer outros fins lícitos. Por manifestação, entende-se o desfile, o cortejo ou comício destinado à expressão pública duma vontade sobre assuntos políticos, sociais, de interesse público ou outros

A consagração destes direitos na Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação está irremediavelmente vinculada às negociações decorrentes do Acordo de Bicesse (1991), que demandou a necessidade de respeito pelos direitos humanos e liberdades básicas, tal como estatui o Ponto 5, do referido Acordo, que versa sobre os “Princípios fundamentais para o estabelecimento da paz em Angola”.(1). [1] Entrementes, o direito de reunião e de manifestação continuam a ser cerceados, a despeito da sua consagração constitucional e infraconstitucional.

Em relação ao cerceamento ao direito de reunião, um dos casos mais emblemáticos ocorreu em 2015 com a condenação e prisão de dezessete jovens, os 15+2, que se reuniam para realizar leituras e reflexões sobre a realidade do país. Outro caso paradigmático foi a detenção de um grupo de cidadãos, dia 9 de Setembro de 2022, enquanto encontravam-se reunidos para organizar uma manifestação a fim de exigir a redução dos preços dos bilhetes de passagem do trecho entre Dundo e Luanda.

Cercear o direito de reunião significa acorrentar a sociedade no abismo do obscurantismo, onde a individualidade e todo o potencial humano são incapazes de fruir em sua plenitude. Porquanto, o direito de reunião permite o desenvolvimento das capacidades criativa, crítica e dialógica, e possibilita a partilha de conhecimentos e valores essenciais para a construção e exercício da cidadania.  

O livre exercício do direito de reunião e demais direitos concorrentes contribuíram, em grande medida, para o desenvolvimento da sociedade ocidental. Os cafés filosóficos do século XVIII, por exemplo, tornaram-se espaços de intelectuais para a reflexão política, económica, social, cultural. Por semelhante modo, em Angola, as reuniões nos ondjangos e em volta da fogueira, por exemplo, constituem espaços de transmissão de valores e reflexão sobre os mais distintos assuntos da comunidade. Logo, a supressão do direito de reunião constitui negação da partilha de valores e da construção de conhecimento, essenciais em sociedades livres e desenvolvidas.

A previsão legal e a efectiva materialização do direito de reunião constituem requisitos para a caracterização de um Estado democrático. Regimes não democráticos, em contrapartida, podem inclusive assegurar formalmente o direito de reunião, mas tendem a criar um conjunto de constrangimentos para impedir a sua efectiva materialização. Regimes não democráticos precisam de cidadãos embrutecidos e passivos para sobre eles exercerem toda forma de tirania com a menor resistência possível. Afinal, cidadãos conscientes e engajados constituem ameaça aos regimes não democráticos.

O direito de manifestação, por semelhante modo, tem sido coartado em Angola, por meio de um conjunto de recursos i) legais ii) ardilosos, e até mesmo iii) violentos. Os recursos legais decorrem em regra da recusa das autoridades administrativas em permitir a realização de manifestações, apesar de a Constituição e a Lei sobre o Direito de Reunião e Manifestação dispensarem a necessidade de qualquer autorização para o efeito, exigindo tão somente a comunicação às autoridades, a fim de assegurarem a proteção dos manifestantes, dos transeuntes e demais bens jurídicos tutelados.

Dentre os meios ardilosos adoptados em Angola para impedir o exercício do direito de manifestação, figuram a realização de contramanifestações, actividades religiosas e recreativas na mesma data, horário e local agendados para a realização da manifestação. Tem-se, outrossim, recorrido a táticas de desinformação sobre a realização de uma determinada manifestação, cooptação e corrupção de manifestantes, dentre outros recursos ardis.

O recurso à violência manifesta-se mediante a ostentação de um forte aparelho repressivo; da emissão de mensagens por artistas e autoridades religiosas, dentre outros, que evocam o risco de instabilidade política, económica e social; da veiculação de imagens da fratricida guerra civil angolana, dentre outras técnicas características da chamada violência pedagógica, a fim de dissuadir a realização de manifestações e desestimular os candidatos a contestatários, para que se tornem dóceis e disciplinados. (António, 2019:101) A violência é o recurso dos fracos com alguma forma de poder em sua posse. A violência é a exteriorização da incapacidade da construção de ideias e de um projecto comum a partir do diálogo.

Além desta forma relativamente menos dura da manifestação da violência pedagógica, são adoptadas práticas como o rapto de manifestantes em suas residências ou enquanto se dirigem ao local de concentração das manifestações; abandono de manifestantes em longínquos lugares ermos; detenções de manifestantes sem indícios de qualquer prática delituosa; espancamentos e execução de manifestantes. Os casos de Isaias Cassule e Alves Kamulingue (2012), Manuel Hilbert de Carvalho Ganga (2013) e Inocêncio de Matos (2020), apenas para elencar alguns, são exemplos de recurso à violência em sua forma mais vil e brutal, a fim de impedir o exercício do direito de manifestação.

A execução de cidadãos indefesos por procurarem exercer o direito de manifestação revela a sobrevalorização do poder e dos bens materiais, em detrimento da vida humana. Esta, é coisificada e passível de ser descartada sempre que estorvar os intentos de eternização das tiranias. Trata-se da banalização da vida humana e do desprezo aos seus direitos inatos, inalienáveis, irrenunciáveis, imprescritíveis e indivisíveis. Nas tiranias, os direitos e liberdades individuais constituem ameaças ao poder, razão pela qual devem ser criminalizados e combatidos todos os que os evocam.

As tiranias não são erigidas em um só acto, mas em uma lógica de negação sucessiva de direitos para assegurar o poder absoluto. O termo turannia, em grego, significa poder absoluto, o que pressupõe o controlo das liberdades, das consciências, dos corpos e demais bens dos indivíduos, que podem ser brutalizados e aprisionados como instrumento de dominação. O controlo absoluto geralmente se manifesta de maneira progressiva e velada, com o respaldo das leis e das instituições que procuram legitimar os actos de negação de direitos e liberdades.

O direito de reunião e o direito de manifestação somente podem ser limitados em situações muito específicas: durante a vigência de estado de guerra, estado de sítio, estado de emergência e em caso da salvaguarda da segurança nacional, da segurança pública, da ordem pública ou para proteger a saúde e a moral públicas ou os direitos e liberdades de outrem, desde que devidamente fundamentada e necessária.  Em Angola, entretanto, durante os anos de 2020 e 2021, o direito de reunião e o direito de manifestação foram cerceados sem qualquer embasamento constitucional. Os decretos presidenciais que limitavam estes direitos, em razão da pandemia da COVID-19, eram flagrantemente inconstitucionais. Trata-se de um traço inerente aos regimes não democráticos em que, a despeito da existência de normas, os governantes situam-se acima delas, nos moldes de Luís XIV.

O direito de manifestação constitui alicerce para a edificação de uma sociedade dialógica. Pois, por meio deste direito os cidadãos podem expressar as suas demandas, realizar o controlo sobre a gestão da coisa pública e limitar a acção arbitrária dos governantes. Do latim manifestare, significa mostrar, demonstrar, revelar, isto é, retirar algo do oculto, tornando-o público. Neste sentido, o livre exercício do direito de manifestação seria a exteriorização de demandas ocultas ou não resolvidas pelo poder público para que estes as resolvam.

A limitação do direito de reunião e de manifestação, antes, durante e depois das eleições de 2022, em Angola, desencobriu a pretensa fachada de Estado democrático. Circulação de blindados, caminhões com canhões de guerra, polícias camuflados e fortemente armados, detenções arbitrárias de cidadãos, raptos e espancamentos para dissuadir a realização de reuniões e manifestações, desvelam características inerentes de Estados não democráticos.

O direito de reunião e de manifestação são pilares da democracia, sem os quais não é possível caracterizar um Estado como democrático. Pois, democracias “são regimes que foram substancialmente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente abertos à contestação pública” (Dahl, 1997: 31). Regimes não democráticos, em contrapartida, são avessos à contestação e escrutínio públicos.

*Cientista Político, Jurista, Filófoso e Teólogo.

Nota

(1) A Lei Constitucional de 1975  previa, em seu artigo 22.°, as liberdades de expressão, de reunião e de associação, mas não de maneira expressa o direito de manifestação. Este direito foi consagrado apenas na Lei Constitucional n.° 12/91, de 6 de Maio, em seu artigo 24.°, segundo o qual: “São garantidas as liberdades de expressão, de reunião, de manifestação, de associação, e de todas as demais formas de expressão.” Entrementes, a clarificação e expansão formal da protecção do direito de manifestação na Constituição ocorreu somente com a promulgação da Lex Mater de 2010.

Referências

ANTÓNIO, Nelson Domingos. (2019). Transição pela transação: uma análise da democratização em Angola. São Paulo: Alupolo.

ARAÚJO, Raúl Carlos Vasques; NUNES, Elisa Rangel. (2014). Constituição da República de Angola anotada. Luanda: Gráfica Maiadouro.

CANOTILHO, José Joaquim Gomes. (1993). Direito Constitucional. Coimbra: Almedina.

CASTILHO, Ricardo. (2013). Direitos humanos. São Paulo: Saraiva.

DAHL, Robert A. (1997). Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Edusp.

MORAES, Alexandre de. (2014). Direito constitucional. São Paulo: Atlas.

SILVA, José Afonso da. (2005). Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros Editores.

Documentos

Acordos de Bicesse (1991). Disponível em: https://docplayer.com.br/59628691-Pontos-essenciais-dos-acordos-de-bicesse.html. Acesso em: 10 Set. 2022.

Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos. (1981). Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm>. Acesso em: 11 Set. 2022.

Constituição da República de Angola (2010). Disponível em: https://www.angola.or.jp/pt/2022/02/08/constituicao-da-republica-de-angola-edicao-especial-2022/. Acesso em: 11 Set. 2022.

Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso em: 11 Set. 2022.

Lei Constitucional (1975). Disponível em: <https://www.lexlink.eu/fileget.aspx?fileid=1151962>. Acesso em: 12 Set. 2022.

Lei Constitucional (1991). Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/176034/000472167.pdf?sequence=3&isAllowed=y. Acesso em: 12 Set. 2022.

Lei sobre o Direito de Reunião e das Manifestações. Lei n.˚16/91, de 11 de Maio (1991). Disponível em: <https://centralangola7311.files.wordpress.com/2011/04/lei-de-reunic3a3o-e-manifestac3a7c3a3o.pdf>. Acesso em: 12 Set. 2022.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos(1966). Disponível em: <https://www.ohchr.org/en/instruments-mechanisms/instruments/international-covenant-civil-and-political-rights>. Acesso em: 12 Set. 2022.

 

 

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