A democracia não pode ser imaginada sem liberdade

A democracia não pode ser imaginada sem liberdade

Inês Amaral* ǁ Muito boa tarde a todas e todos, é com muito gosto que participo no lançamento do livro “Angola amordaçada: a imprensa ao serviço do autoritarismo”, de Domingos Da Cruz. O livro saiu em 2016 mas só hoje é lançado em Angola, facto que penso que obriga a reflectir. Participar neste debate é uma enorme responsabilidade para mim, mas também uma grande honra. Tenho uma enorme estima e consideração pelo Domingos. É um homem inteligente, corajoso e determinado. É por isso uma enorme honra participar neste momento por tudo o que ele representa.

A obra que Domingos da Cruz nos apresenta é de grande substância académica e interesse para a sociedade civil numa era em que a digitalização, ao contrário do que convencionalmente se apregoa, tem vindo a acentuar as desigualdades no acesso à informação e a perpetuar a limitação das liberdades de imprensa e de expressão. O livro centra-se numa temática contemporânea que tinha de ser analisada pela lente científica, considerando a escassez de estudos sobre a liberdade de imprensa em Angola.

Este livro resulta de uma investigação de mestrado bem fundamentada e sólida. Trata-se de um trabalho de investigação pioneiro sobre a liberdade de imprensa no país, a partir da conceptualização de democracia liberal e imprensa livre e plural, analisando o plano das acções e dos discursos. A partir deste enquadramento, o autor sistematiza, questiona e traz à colação a situação em Angola quanto à liberdade de expressão e de imprensa. Os ataques à liberdade de expressão e impressionantes histórias verídicas de ataques a jornalistas e activistas dos direitos humanos são narrados neste ensaio que prova a censura e a violação da liberdade política em Angola.

Eu diria que não se compreende um país pelo momento actual ou pelas generalizações que se fazem dele. É por isso que a leitura deste livro nos ajuda a compreender para além do óbvio e para além do noticiado, que nem sempre corresponde ao factual. O livro “Angola amordaçada: a

imprensa ao serviço do autoritarismo” incorpora um rigoroso contributo científico sobre o enquadramento histórico do país no que concerne às questões relacionadas com os media, apresentando os diferentes quadros constitucionais que equacionaram a liberdade de imprensa e a sua garantia. Para se olhar em frente, é preciso tomar o pulso ao passado. É preciso estudar. É preciso tirar conclusões. É isso que Domingos da Cruz faz neste livro.

As liberdades de expressão e de imprensa devem ser pensadas no campo do debate público, condição que se considera indispensável para a formação das consciências individuais e colectivas. A proposta de pensar a liberdade e a democracia está intrincada na conceptualização das políticas públicas que concernem à Comunicação. E é neste contexto que Domingos da Cruz empreende um trabalho de grande fôlego, onde equaciona a democracia e a liberdade de imprensa numa perspectiva dos direitos fundamentais e das razões que suportam o debate do direito à liberdade. Numa verdadeira radiografia do país, Domingos da Cruz traz para o debate público questões centrais sobre a evolução da liberdade de imprensa em Angola e relatos absolutamente inquietantes.

O meu lugar de fala não é a partir de Angola. Esse lugar pertence aos angolanos e às angolanas. O meu lugar de fala é o da Academia e das pessoas que se interessam pelo estudo do Jornalismo e da liberdade de expressão. E é nessa condição, de académica e investigadora, que gostava aqui de afirmar que a democracia depende de públicos bem informados: se as pessoas estão ou são mal informadas, as decisões que tomam podem ter consequências adversas; da mesma forma, quando uma sociedade é ou está mal informada, as suas decisões sociais colectivas podem ter efeitos nefastos.

Tradicionalmente, os gatekeepers informativos que escolhem e validam as notícias a chegar ao público são jornalistas e editores cuja conduta se orienta por princípios éticos e deontológicos específicos, oferecendo aos cidadãos informação fidedigna essencial para a tomada de decisões informadas em contexto democrático. Quando estas informações são censuradas ou sofrem autocensura, é garantido que se promove o que hoje tanto se apelida de desinformação. Note-se que já não se trata de determinar a importância relativa dos factos, oferecer interpretações questionáveis ou de evitar perguntas inconvenientes e o subsequente escrutínio pela esfera pública. Trata-se sim de fabricar os próprios factos ou, pelo menos, de estabelecer enquadramentos alternativos que permitam deliberadamente, distorcer o seu significado, tornando-os noutra coisa que melhor se coaduna com uma narrativa completamente invertida.

Escreveu Nelson Traquina que “A democracia não pode ser imaginada como um sistema de governo sem liberdade, e o papel central do jornalismo, na teoria democrática, é informar o público sem censura”. De facto, verifica-se na teoria democrática uma relação simbiótica entre jornalismo e democracia. A essência da ideologia profissional jornalística baseia-se numa herança histórica de luta pela igualdade e contra a censura. Uma democracia sem imprensa livre é inconcebível, quanto muito representa propaganda ao serviço de regimes totalitários.

O que vemos no controlo dos média é um impulso autoritário que se revela simultaneamente imprudente e destrutivo – com a implantação de propaganda, difamação e intimidação. Este impulso autoritário é igualmente um impulso de submissão: a aquiescência traduz-se na partilha de uma narrativa dominante, que o destinatário usa em seu favor para reforçar os laços a grupos desinformados.

Neste livro percebemos a complexidade das consequências dos constrangimentos da liberdade de imprensa e das violências na esfera pessoal e no exercício da actividade jornalística, considerando uma tipologia abrangente de micro e macro violências exercidas individualmente ou em grupo.

Em Junho de 2000, ainda a guerra não tinha acabado, e a propósito da condenação de Rafael Marques por difamação ao então presidente da república José Eduardo dos Santos por ter escrito o texto o batom da ditadura, escrevi o seguinte: “A censura em Angola remonta ao colonialismo português. Após a independência, o sonho de um país autónomo e livre tornou-se um pesadelo para os homens que fizeram a revolução e a viram ser-lhes tirada. O jornalismo angolano independente assume hoje uma luta para defender a liberdade a que tem direito.”

Por entre os vários relatos de ataques a jornalistas angolanos, terminei o texto assim “Perante a manipulação de informação típica de uma guerra, os jornais e as rádios independentes expõem a censura de que são alvos publicando páginas em branco e passando noticiários silenciosos. Os jornalistas ao serviço do MPLA e da UNITA são também fortemente censurados, sendo uns presos e processados, outros desaparecidos e alguns até assassinados, por desordeiros não identificados. Diz, quem sabe, que “o lápis azul de Angola” tem balas.” Quando foi publicado, em 2016, o livro de Domingos da Cruz corri a comprá-lo. Tinha acompanhado o percurso de Domingos no inacreditável caso conhecido como 15+2 e sabia que este livro seria de leitura obrigatória.

A escritora nigeriana Chimamanda Adichie alertou para o perigo da história única. Este livro de Domingos da Cruz garante precisamente que nunca se conte uma história única sobre a liberdade de imprensa em Angola. Mas esta obra vai além disso: garante um legado a que a Academia angolana tem de dar continuidade assegurando que está viva e atenta ao país, ao mundo e à necessidade de garantir a liberdade de imprensa e liberdade de expressão no país. Gostava de terminar afirmando que quando lemos Domingos da Cruz respiramos liberdade e sabemos que da resiliência e da resistência se faz História.

Obrigada.

*Doutora em Ciências da Comunicação.

*Texto lido durante a apresentação do livro acima referido, no dia 4 de Outubro de 2021. A escolha do excerto que dá título ao texto é da responsabilidade do Coordenador do Observatório.  

 

RELACIONADOS:
Lei de Imprensa e o exercício da liberdade de expressão

Manuel Ngangula* ǁ O artigo 44.º da Constituição da República de Angola (CRA), consagra a liberdade de imprensa na panóplia dos direitos, liberdades e garantias fundamentais. Para se efectivar na Leia mais

SALVAR A COMUNICAÇÃO EM ANGOLA

Crisóstomo Ñgala*│Quando a actividade jornalística se curva a interesses políticos e económicos (empresariais), a comunicação torna-se uma ideologia, um falso valor e alinha-se àquilo que não é autêntico. Como salvar Leia mais

A conexão e as fake news em Angola

«As fake news são […] moldadas de acordo à vontade de quem enuncia. Duvidar de qualquer informação, já é um passo significativo de se blindar das fakes.» Crisóstomo Ñgala*│Recentemente, um Leia mais

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *