ANGOLA: SERVIÇOS SECRETOS E VIGILÂNCIA DIGITAL

ANGOLA: SERVIÇOS SECRETOS E VIGILÂNCIA DIGITAL

Domingos da Cruz*ǁ Cinco colunas/pilares sustentam a espionagem em Angola:

  1. Político-jurídica. A combinação de leis injustas, criadas pelo poder político viabiliza a prática e o aprofundamento da espionagem. Como ficou expresso acima, as empresas de telecomunicações, são obrigadas, por lei, a colaborarem com o poder instalado para a concretização dos seus intentos imediatos com vista a manter o poder político. Por outro lado, o Instituto Angolano das Comunicações (INACOM), sob tutela do Ministério das Tecnologias de Informação e Comunicação, e este sob mando do Presidente da República, dita os caminhos a seguir no sector.
  2. Político-financeiro. As empresas de prestação de serviços de internet e a telefonia estão todas sob o controlo do poder político. No passado eram todos accionistas do partido no poder. No caso da UNITEL, era detida por Isabel dos Santos, sendo 25% do General Leopoldino do Nascimento. Depois de Isabel dos Santos ter sido alvo de investigação criminal, a petrolífera estatal, SONANGOL, comprou as acções da empresa brasileira, Oi SA, ficando com 75% das acções na UNITEL. Por outro lado, os accionista da Movicel, outra empresa de telecomunicações, também pertencem à esfera do poder. Desde 2019, a Movicel detém uma participação de mercado de 27%. O Instituto Nacional de Segurança Social possui 25% e a Lello International é proprietário de 38%. Na era de João Lourenço, o General Leopoldino do Nascimento vendeu as suas acções (cf. Freedom House: 2021).
  3. Político-tecnológico. Esta forma de controlo reside na infra-estrutura de suporte e distribuição do sinal de internet e telefonia para o consumidor final. Em 2020, o entusiasmo tomou conta de muitos angolanos por causa do licenciamento de mais uma empresa, a Gambiana Africell Holding SA, para operar no sector. Por imposição governamental, esta empresa vai prestar os seus serviços através de uma infra-estrutura pertencente à Angola Telecom, propriedade do Estado angolano. Aqui está, mais uma vez, a garantia do controlo à semelhança da UNITEL e Movicel, e neste último, e sobretudo por via tecnológica, o poder político sobrepõe-se a tudo. Sobre isso, a Freedom House afirma que “a Sonangol detém 3 dos 18 ISPs do país (MSTelcom, Nexus e ACS), é um dos principais accionistas da Angola Cables e (controla a Unitel), o maior ISP do país, após adquirir uma participação de 25% em Janeiro de 2020. A Angola Telecom é proprietária de 51% da Angola Cables, e fornece serviços de Internet.”
  4. Político-Internacional. Para a prática de espionagem, o regime conta com uma extensa rede de apoio internacional. No plano ideológico, o parceiro de longa data é a Rússia, onde inúmeros agentes foram treinados. O suporte russo dura há mais de 4 décadas. Em adição ao treinamento de agentes, a Rússia também fornece meios técnicos. A Alemanha, por sua vez, vende material aos serviços secretos de Angola. Não está claro se a venda é feita por empresa privadas ou pelo governo alemão. Segundo o estudo mais recente da Freedom House sobre cyber liberdade, Angola tem tecnologia que permite espionagem a partir das redes sociais. Uma empresa privada italiana, Hacking Team, em 2013, vendeu ao SINSE, a tecnologia de espionagem, Remote Control System (RCS). Esta tecnologia descodifica senhas, acede e rouba documentos e intercepta conversas via Skype, entre outras funções (WikiLeaks: 2015). Os parceiros internacionais do regime no sector privado, estende-se aos Estados Unidos onde recrutam cyber mercenários. O mesmo sucede com Israel, onde a abordagem é variada, uma vez que vindos deste país participam indivíduos, empresas privadas e a contribuição do governo israelita no âmbito da cooperação com Angola no sector de defesa e segurança (Africa Monitor: 2020). Alguns poucos oficiais, têm recebido formação de curta duração em Israel. Segundo o Centro para a Propriedade Intelectual e Tecnologia de Informação, o governo chinês, através da ZTE e Huawei fornecem tecnologia e apoio para todos os subsectores de defesa e segurança em Angola. Em adição, concederam tecnologias específicas para espionagem via telefónica e internet. Este suporte adicional da China visa grupos devidamente identificados, tais como activistas e opinion makers, e penetra os sistemas internos de comunicação de organizações da sociedade civil. O estudo, Digital Media: An Emerging Repression Battlefront in Angola, revela que o governo chinês ajudou a aprimorar a espionagem a uma escala maior em tempos de eleições, tendo os investigadores colectado evidências aquando das eleições de 2017. Sheena Greitens, Professora da Universidade do Texas, aprofunda esta evidência, num estudo sobre a espionagem que a China leva a cabo dentro e fora do país, e sobre quais os parceiros estratégicos que contam com o seu apoio para o controlo interno. Baseada na colecta de dados sobre espionagem, Greitens criou um mapa mundial de vigilância digital que está em curso em inúmeros países com ajuda da China. O regime angolano está entre os beneficiados, porque na visão das autoridades da China, o grupo hegemónico deste país é um parceiro chave na região, como indica o mapa abaixo (Imagem 1). Os países pintados a cor azul são aqueles onde ocorre a espionagem feita pelo governo com ajuda de tecnologia chinesa. Em alguns casos, o regime de Beijing fornece também recursos humanos, tal como sucede em Angola. É neste quadro que a parceria autoritária Angola-China construiu, apetrechou, formou os técnicos/agentes e inauguraram em 2019, em Luanda, o Centro Integrado de Segurança Pública (CISP). Até à data da sua inauguração tinham instalado mais de 700 câmaras à volta de Luanda, câmaras essas que têm capacidade para fazer o reconhecimento facial, uma função que viabiliza a vigilância para além do ciberespaço, como por exemplo, reprimir protestos no terreno. Para além das câmaras, o resto do equipamento é fornecido pela Huawei. Segundo as autoridades angolanas, serão construídos mais 17 centros em igual número de províncias para o mesmo fim. Estes centros adicionais garantem a cobertura de todo o país. Uma análise comparativa deve reconhecer que inúmeros países têm instituições semelhantes para ajudar no combate ao crime, articular emergências médica e bombeiros, monitorar o trânsito, prevenir e combater o crime. Tendo em conta o grupo que governa Angola, e fácil intuir para que fim esta instituição foi criada. Segundo Carlos Albino, comissário da Polícia Nacional, o CISP “vai funcionar como um órgão de comando e gestão das operações das forças, que vai congregar distintos órgãos do Ministério do Interior, Forças Armadas, Serviços de Inteligência Externa e Interna. O novo sistema de segurança estará ligado a uma plataforma digital que vai permitir uma comunicação mais eficiente, através da colocação de câmaras na via pública em zonas estratégicas, com realce para os pontos críticos já identificados.”
  5. Omnipolítico. Em verdade, o controlo através do sector político, não pode ser separado no contexto de Angola. O político, enquanto categoria ordenadora e reordenadora da realidade, está em todos os cantos e recantos conforme o regime fez questão de estruturar e expandir. A forma política de controlo, tem uma elasticidade quase que omnipresente, só assim se consegue compreender a captura da economia, da finança, da cultura, da tecnologia, da igreja, da sociedade civil, da arte e doutras variáveis intangíveis.
Imagem 1 – Presença da vigilância chinesa e plataformas de segurança tecnológica pública

Milícias digitais, medo, liberdade de expressão e de imprensa.

Uma vez que a espionagem está amplamente espalhada no país, existem vários actores para executar essa tarefa. Desde estrangeiros contratados por personalidades que têm cargos de responsabilidade pública, dentro dos serviços secretos, ou não, tal como fizeram José Maria, o então Chefe dos Serviços de Inteligência Militar, e o então vice-presidente, Manuel Vicente. Ambos tinham contratado cyber mercenários israelitas e americanos para levarem a acabo espionagem em Angola. Existem ainda os actores oficiais, Serviço de Inteligência Externa, Serviços de Inteligência Militar e os Serviços de Inteligência Interna. Curiosamente, todos estes foram usados para fins privados, para reafirmação de poder e marcar terreno entre os membros da gang protegidos sob a capa de governantes.

Por outro lado, foram criadas milícias digitais com o patrocínio dos serviços de inteligência oficiais e do partido no poder (em verdade, na prática, tudo constitui a mesma realidade), grupos para espionar e atacar pessoas no ciberespaço, com foco particular para as redes sociais. Entre estas milícias destacam-se o GRECIMA, coordenado a partir do Palácio da Presidência da República, cujo nome foi alterado para Gabinete de Acção Psicológica, na era de João Lourenço. Outra milícia relevante pelas suas acções, actua no interior do Comité Provincial do MPLA, em Luanda, e está articulada com outra milícia digital da JMPLA e finalmente, há outra milícia que está alojada na estrutura central do partido, sob coordenação do Gabinete de Informação e Propaganda, articulado com o Gabinete para Cidadania e Sociedade Civil.

O trabalho destas milícias não se esgota no espaço digital, elas logram frutos nos dois mundos. Quando é necessário transporem o resultado do seu trabalho para a esfera física, encaminham para as outras instituições que constituem o prolongamento do partido, para assediar, ameaçar, perseguir, acusar, prender e assassinar. Neste âmbito, parece relevante referir alguns casos de vigilância online pelas redes sociais que foram transpostos para o mundo físico. Armando Chococa foi acusado e julgado, em 2020, por ter publicado uma crítica, via Facebook, dirigida ao corpo de segurança do governador provincial do Namibe, Archer de Sousa Mangueira, pelo facto de terem tratado com violência a jornalista Carla Miguel, quando esta tentava fazer o seu trabalho. Chicoca, terá sido acusado do crime de “insulto à autoridade pública.” No ano anterior, Samussuku Tshikonde foi detido a partir de sua casa. Permaneceu três dias numa cela na Direcção de Investigação Criminal, em Luanda. A razão da detenção terá sido um vídeo publicado via Facebook, no qual afirmou que na era de José Eduardo dos Santos, este último, no caso, João Lourenço “não era nada.” A crítica de Tshikonde terá sido expressa a propósito de manifestantes que tinham sido detidos num protesto nos dias precedentes.

Todo este ambiente de vigilância no ciberespaço e além, gera o medo e retrai a liberdade de expressão. Provoca a autocensura na esfera pública e destrói a qualidade do debate público.

Sabedoria popular e espionagem

O povo sabe o que se passa em Angola no campo da espionagem. O povo sabe que é objecto de controlo. A única diferença em relação aos cientistas é que o povo não faz gráficos, nem coloca o que se está a acontecer dentro de uma baliza teórica. À semelhança de investigadores em universidades na África do Sul, no Quénia, na América do Norte e na Europa, que estudam a vigilância em Angola, o povo deste/daquele país também sabe que não escapa à navalha afiada do poder e da vigilância digital. Um inquérito revelou o conhecimento do povo sobre o assunto. Entre 822 voluntários que responderam online, 15.11% disse não conhecer, nem possuir qualquer evidência de que o governo faz vigilância. Do lado oposto, 84.88% tem resposta contrária.

Alguns expressaram medo, dizendo, “não posso responder. Ainda fazem uma visita no meu perfil.” Outra pessoa expressou um tom mais grave: “quem fala, (…) tem a certeza que será morto.” Imensos internautas, tiveram uma reação semelhante em relação ao inquérito. Isso confirma o ciclo do medo, um ciclo instrumentalizado pelo regime, que atingiu o povo, mas também o grupo opressor. O povo tem medo da punição nas mais variadas formas, mas os do lado oposto têm medo daquele dia em que as vítimas vão enterrar o medo com a nuvem do sofrimento, e se levantarão colectivamente para glória e celebração da liberdade. Como diria, Milton Santos “existem apenas duas classes, as do que não comem, e as do que não dormem com medo da revolução dos que não comem”. É por isso que não freiam a espionagem, para evitar a revolução, mas é só uma questão de tempo. Nada resiste à força do tempo e da história. 

Quando confrontamos o conhecimento popular ao trabalho de cientistas que usaram tecnologia sofisticada para fundamentar a existência de vigilância, os resultados são essencialmente semelhantes. Arthur Gwagwa, pesquisador sénior de Strathmore University, em conjunto com a sua equipa, deslocaram-se a Angola, em 2017, e através do Open Observatory of Network Interference (OONI), foram identificados middle boxes – tecnologias de rede que podem ser usadas para diversos fins. Embora possam ser usados para fins normais de rede, como carregamento de cache para tornar a conexão à Internet mais rápida, eles também podem ser usados para censura e/ou manipulação de tráfego.

Testes feitos, indicam que o regime bloqueia e desacelera a velocidade da internet, espia e ataca sites como é o caso do Club K, como indicam os resultados abaixo. No lado direito do relatório resultante da medição, pode ler-se verdadeiro:

Fonte: Gwagwa, A. Digital media: An emerging repression battlefront in Angola. 2017, p.7-8.

Considerações finais

Sendo certo que o Estado angolano está capturado, a implicação lógica é que os serviços secretos também estão e fazem da vigilância digital algo banal, tendo como alvo imaginário todos os que estejam em território nacional e além-fronteiras quando é necessário.

Havia vazio legal sobre a vigilância digital, mas este vazio foi formalmente ultrapassado em dois momentos. Primeiro, na Lei Constitucional de 1992, mas aqui requereria hermenêutica constitucional combinada com o Direito Internacional dos Direitos Humanos. Segundo, a Constituição de 2010 estabelece, com absoluta clareza, que é inaceitável/proibida a vigilância de qualquer tipo, excepto quando houver autorização judicial fundamentada no império do Direito. Por outro lado, outras normas infraconstitucional seguiram esta baliza constitucional. Em oposição, algumas contradizem a Carta Magna de 2010 e por consequência, geram também conflito com outras normas acima referidas.

O que é facto é que a lei, nada vale para o grupo cleptocrata aferrado ao poder. É ignorada, tal como os casos demonstram, os pesquisadores encontram demasiadas evidências e o povo, sabe. Este povo está tomado pelo medo. Franco (2013:79-85), no seu estudo intitulado A Evolução do Conceito Estratégico do Serviço de Inteligência e de Segurança do Estado da República de Angola, afirma que uma das características que marca esta instituição na “relação com os cidadãos, é o medo”, sendo conhecida como uma instituição onde trabalham assassinos. Tendo recomendado a reforma da instituição para que se adeque ao papel que lhe cabe. Se assim suceder, será então o fim da necropolítica que reina há mais de quatro décadas.

Como se não bastasse a vigilância, há um padrão narrativo constante sobre o cyber espaço. Esta narrativa foi inaugurada pelo Presidente da República José Eduardo dos Santos, que consiste em ameaçar publicamente os cidadãos sobre a necessidade de se fazer um uso correcto das redes socais, sob pena de serem moral e criminalmente responsabilizados. Neste âmbito, em 2016, o regime começou a discutir a possibilidade de aprovação de uma lei que regularia as redes sociais. Na era de Lourenço, continua o mesmo discurso. O mais recente foi expresso pela vice-presidente do MPLA, Luísa Damião. Enquanto isso, o Ministro das Telecomunicações, Tecnologias de Informação e Comunicação Social, Manuel Homem, em 2020, anunciou a intenção de encerrar o que ele chama “sites ilegais.” Não se sabe o que é isso.

Somado aos pilares que sustentam a vigilância, está o artigo 333.º do novo Código Penal que entrou em vigor em 2021. Este prevê de seis meses a três anos de prisão para quem “atacar o Presidente da República.” Neste contexto, ataque pode ser uma foto, um vídeo ou texto num meio de comunicação tradicional ou nas redes sociais. Ou seja, a liberdade de expressão e de imprensa está sob cerco no mundo virtual e físico.

Um detalhe que sintetiza a rede de espionagem digital e seus pilares, é o registo do cartão sim. A legislação de inúmeros países também obrigam o registo, mas os dados mantém-se sob tutela das operadoras porque são informações que vinculam a relação entre o cliente e a empresa. No caso de Angola, por força da lei, as operadoras são obrigadas a disponibilizarem os dados para o Instituto Angolano das Comunicações (INACOM), uma instituição governamental.

A espionagem digital abusiva em Angola é um facto e inviabiliza a criação de um Estado Democrático e de Direito, por isso, as métricas internacionais sobre a liberdade no ciberespaço, dão nota negativa e colocam Angola entre os países onde a liberdade na internet está condicionada a constrangimento de ordem essencialmente política.

*Este relatório foi financiado pelo Media Policy and Democracy Project (MPDP). O MPDP é um projecto conjunto da Universidade de Joanesburgo, Departamento de Comunicação e Media e da Universidade da África do Sul, Departamento de Ciências da Comunicação, no qual o autor é pesquisador convidado.

RELACIONADOS:
Angola: vigilância digital e necropolítica

Domingos da Cruz*ǁ A vigilância é uma prática comum dos Estados e actores não estatais, tendo ganho várias formas à medida que progredia a ciência e a tecnologia. No final Leia mais

Kipenas, escombros e o vazio: para os governantes estas são “escolas” em Malanje

António Salatiel* ǁ Escolas da “cor do abandono”, em Malanje, são o resultado da falta de investimento no ensino. Entende-se por escola, a instituição que se dedica ao processo de Leia mais

Miséria infantil em Malanje: Reflexo de um país “governado” por criminosos

António Salatiel*ǁ Crianças de rua é entendido como um fenómeno social que designa um grupo vulnerável de crianças que têm a rua como único lugar para a sua sobrevivência. Elas Leia mais

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *