AUTORITÁRIO E SEM LIBERDADE

AUTORITÁRIO E SEM LIBERDADE

Luzia Moniz* ǀ País sem liberdade, assim está classificada Angola na avaliação anual (2022) da organização não governamental Freedom House que examina o estado da liberdade no Mundo a partir de dois parâmetros: direitos políticos e liberdades cívicas, em 210 países e territórios.

O Índice de Democracia do The Economist Intelligence colocou, também em 2022, Angola entre os 16 países africanos a sul do Sahara que pioraram a sua classificação quanto à democratização da sociedade.

Classificada como uma autocracia – regime híbrido com elementos de democracias, como eleições multipartidárias e práticas ditatoriais, nomeadamente a captura do Estado por quem detém o poder –, Angola consolidou o lugar que, em 2017, a incluía no restrito grupo das três autocracias da região da SADC, com o Zimbabwe e a República Democrática do Congo.

Do simulacro eleitoral das autocracias resulta sempre a eleição de gente que aprende a comportar-se  “não como representantes democraticamente eleitos, mas como homens do Poder”, de acordo com Joseph Ki-Zerbo, no livro Para quando África?- entrevista de René Holenstein.

Ao participarem desse simulacro, esses partidos tornam-se no seguro da longevidade do próprio regime autocrático, inscrito na Constituição como democrático, mas com práticas, umas sorrateiras outras claras, típicas de regimes totalitários.

De regime de partido único, o País passou, segundo o historiador africano do Congo, Jean-Michel Mabeko-Tali para regime de “partido-Estado”,  onde uma única formação política controla todos os poderes de uma sociedade sem instituições republicanas.

Nesse regime autoritário, com a repressão sempre presente, o exercício das liberdades para além de controlado tem de ser “permitido” pelo poder e a existência de outras formações políticas é limitada e também controlada pelo partido-Estado que dá primazia aos partidos satélites que se constituem em autênticas  extensões do próprio partido-Estado.

A ilegitimidade do regime assenta na sua insanável ambiguidade. Enquanto se apresenta, sobretudo para a sua imagem externa, como democrático e baseado no primado da defesa da dignidade humana, mantém uma prática de cerceamento das liberdades e falta de transparência, nomeadamente na gestão dos dinheiros públicos.

O poder neste regime esgotado tem como missão única, a sua manutenção a qualquer preço, por isso usa o medo como instrumento de controlo da sociedade e intimidação das populações.

 

Perigo de recolonização

Para a sua sobrevivência, o partido-Estado, hoje funcionando como uma organização oligárquica que vive numa confusão ideológica (a cambalhota de Angola na questão da guerra na Ucrânia é exemplo disso), controla o poder económico, captura a comunicação social e todos instrumentos de repressão do Estado, nomeadamente a justiça, as forças armadas e a polícia.

Num país onde mais de 65 por cento da população tem  menos de 25 anos e os jovens enfrentam uma taxa de desemprego de cerca de 60 por cento, ao canalizar os recursos nacionais para a sua própria sobrevivência, o regime autocrático mostra-se infinitamente incapaz de dar resposta aos  problemas das populações, como a educação, saúde, emprego, saneamento básico e pobreza.

Com isso, entre os custos políticos dessa opção está a perda de confiança dos cidadãos no Executivo e no partido-Estado, o que abre caminho para uma revolta generalizada, por um lado e, por outro, para o surgimento de populistas e demagogos, que com boa oratória e carisma são capazes de embalar e criar ilusões às desesperadas populações.

Sem qualquer esperança de ver as questões primordiais resolvidas e de viver com dignidade, as populações ficam muito vulneráveis, não só expostas a quaisquer populismos, mas, eventualmente, a uma ocupação estrangeira ou recolonização, se daí intuírem que os seus problemas básicos poderão ficar resolvidos.

Em situação de crise, perante um regime assente na exclusão e que divide os cidadãos entre membros e não membros do partido-Estado, qualquer “vendedor de banha da cobra” com boa retórica conseguirá sem dificuldades passar a ilusão  de que a situação de miséria que os angolanos enfrentam há décadas, pode ser resolvida  rapidamente, de forma milagrosa.

A personificação do poder faz parte do quotidiano do regime com máquinas políticas e falsas organizações da sociedade civil a funcionarem como a sustentação da liderança autocrática do país. Os políticos e as máquinas político-partidárias transformaram-se em meros batedores de palmas em apoio a tais lideranças, tornando-se ridículos quando, por exemplo, aplaudem um orçamento geral de Estado que, opcionalmente, deixa milhões de crianças sem escola.

 

Periferização do protesto

 

A privação e/ou condicionamento das liberdades, nomeadamente da liberdade de manifestação, faz parte da agenda central de poderes autoritários que, para mascarar o regime, permitem alguma liberdade de manifestação sobretudo aos partidos que fazem parte da engrenagem do sistema, os cumpridores das normas estabelecidas pela própria autocracia.

Foto/ OIC.

Não se pode falar em liberdade de manifestação quando as manifestações de protestos são reprimidas explicita e/ou implicitamente. Quando trajectos e locais para a manifestação são escolhidos em função dos interesses do contestado ou quando o poder proíbe a contestação em locais centrais,  “periferizando”  o próprio protesto.

Que liberdade é essa, quando as manifestações de protestos contra os actos e políticas do poder não têm cobertura dos media para evitar que se divulgue para o grande público as denúncias das atrocidades, más políticas, incompetência e corrupção dos políticos?

De que liberdade se fala, quando direitos básicos, como o direito à informação, constitucionalmente consagrado, são diariamente violados, negando aos cidadãos o acesso à informação sobre o que se passa no seu País? Muitas vezes, sobretudo em casos de corrupção e má governação, os angolanos são informados a partir de media estrangeiros.

Para o controle das manifestações, o poder usa meios repressivos e securitários formais e informais,  violência policial, perseguição e prisão de políticos e de activistas políticos, chantagem e organizações partidárias e eclesiásticas, entre outras, como instrumentos de repressão.

A democracia é inclusiva, “não corta cabeças”, como diz Filomeno Vieira Lopes, líder do partido angolano Bloco Democrático. Para terminar com esse corte de cabeças, ou seja, para pôr fim ao regime de exclusão será necessário mais do que a reforma das instituições.

É preciso pôr fim ao regime autocrático e, em seu lugar, edificar outro em termos teórico e prático com claras e intransponíveis barreiras de separação, limitação e descentralização de poder e objectivas incompatibilidades para o exercício de funções públicas.

Como sair disso? É ingénuo esperar que a democratização de Angola parta de ditas potências democratizadoras ocidentais, uma vez que lidam com naturalidade e muitas vezes com grande entusiasmo com regimes autocráticos desde que os seus interesses, geralmente económicos, não sejam beliscados.

Com a crise energética internacional, criada pela guerra na Ucrânia e que atinge fortemente o mundo ocidental, os produtores de petróleo e de gás, como Angola, ganharam,  dessas potências, uma espécie de laissez passer para as suas atrocidades, confirmando que os direitos e a dignidade dos povos do Sul não fazem parte da agenda central dessas potências.  

Contra um poder incapaz de resolver os principais problemas das crianças e da juventude, nomeadamente a falta de escola (o país tem entre dois milhões, segundo o Governo, e quatro milhões de crianças sem escola, segundo dados de sindicatos e outras organizações da sociedade civil), é preciso “unidade e luta”, expressão tão cara a Amílcar Cabral.

Perante este quadro, dentro da própria estrutura do regime, as fissuras do edifício autocrático vão-se tornando visíveis com escândalos que se sucedem, incluindo dentro da espinha dorsal do Poder, o aparelho securitário.

E isso vira  chacota ou meme nas redes sociais e nos media estrangeiros, ante o desnorte do poder que, sem qualquer projecto para o País, vai mostrando empenho na substituição de uma oligarquia por outra, mantendo a essência da estrutura do regime.

Fazer da resistência uma constante e contribuir para o acicatar das contradições e o aprofundar das divisões internas do regime que também se alimenta do medo das consequências do seu derrube, deve estar no centro da acção dos oposicionistas.  

Medo que levou o regime a colocar nas ruas de Luanda um aparato bélico sem precedentes, para evitar que os revoltados saíssem em massa protestando contra a “batota eleitoral” e que essa contestação atingisse um ponto incontrolável e se transformasse num epifenómeno que beliscasse  a sua  manutenção do poder. 

Como os regimes totalitários não são refundáveis nem revitalizáveis, o seu extermínio passa pela construção de uma frente ampla, unidade de diferentes grupos e sectores dentro e fora do país, que, diariamente, com actos de resistência vão desgastando o poder autocrático.

Outro caminho será esperar pelo seu desgaste natural ou ainda por um epifenómeno que derrube o poder, enquanto o povo se desespera com o seu destino e clama por uma oposição política mais activa e capaz de abraçar os seus anseios de liberdade, igualdade e  equidade política, económica e social.

*Socióloga e Jornalista.

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