Governo paternalista e o exercício da cidadania

Governo paternalista e o exercício da cidadania

Os objectivos não estão longe daqueles defendidos pelo poder colonial. Pois, no nosso caso, além do sistema reproduzir as desigualdades impossibilita também a crítica. 

Muata Sebastião│ A velocidade da informação, no mundo actual, tem feito com que sejam trazidas para o debate público reflexões de âmbito social, político, económico, etc. Essas reflexões privilegiaram as novas gerações que, de uma forma ou de outra, sentem a necessidade de reflectirem sobre os seus problemas e buscar pontos de convergência. Um momento ímpar, sobretudo, para uma geração com poucas referências, o que torna a luta destes num desafio enorme e, em muitos casos, tem sido responsabilizados pelas suas iniciativas, nalgumas vezes objecto de tortura psicológica.

Ao propormos esta reflexão queremos apontar vias possíveis para tornar efectiva o exercício da cidadania que, segundo o nosso entendimento, passará por compreender o percurso histórico de uma Angola que há muito tem lutado para garantir a afirmação da maioria social. Essa garantia permite, por sua vez, estabelecer um novo compromisso social onde valores como a democracia, a justiça social são possíveis pelas lutas que tornam irrelevante a presença de governos paternalistas, que na verdade podem, para o nosso contexto, significar alguma ameaça ao pleno exercício da cidadania.

A nossa reflexão surge num momento em que muita gente permanece céptica em meio a vários discursos políticos, sobretudo, nos dias que correm. Assim como as outras nações, Angola enfrenta a pandemia da COVID-19 que, apesar de ser grave tem desmascarado a ineficiência do nosso sistema de saúde.

Todos nós nascemos de um pai e de uma mãe. À medida que fomos crescendo, fomos nos acostumando com a ideia de acreditar e confiar no que os nossos pais diziam. E, ao longo da vida, fomos aprendendo que os nossos pais querem sempre o melhor para nós. Daí  que, não poucas vezes, nos vimos obrigados a concordar com o que diziam ou decidiam sobre nós. Permanecemos firmes acreditando nos conselhos, nas orientações. Conforme crescemos, acostumámo-nos com a ideia de que os nossos pais querem o melhor para nós.

«Um governo que se vangloria com a construção de um cemitério, independentemente do tamanho, precisa ser levado a sério?»

Esta crença relativamente aos pais termina somente quando nos tornamos adultos e, a partir desse momento conseguimos compreender coisas que uma criança ou um adolescente não compreendia.

Esta analogia permite-nos compreender os estágios sobre os quais Angola passou até à conquista da independência. A experiência da criança repete-se e configura-se ao ponto de algumas vezes tomarmos atitudes que nos reportam à infância.

Foi assim com Angola, no contexto das lutas pela independência. Tão logo despertaram, os angolanos ganharam consciência e viram na luta pela libertação uma das formas de mostrar que já haviam entendido a real missão portuguesa no território angolano. Portanto, o único propósito a ser concretizado era a liberdade e desmascarar a falsa ideia paternalista do colono que, além de segregar, tornava cada vez mais consolidada a política da exploração e escravidão dos angolanos.

Nascia uma geração de jovens que, de forma destemida enfrentaram o poder real de Salazar, colocando as suas vidas em risco pois, já sabiam que era a hora de resgatar a liberdade e a independência de seus povos.

Infelizmente, logo após a conquista da independência os nacionalistas não foram capazes de impedir que certos comportamentos coloniais fossem replicados na Angola independente. Um destes comportamentos foi a autoridade paternal que rapidamente se foi enraizando entre os angolanos e muitos começaram a ver o poder dos governos da mesma forma que viam e acreditavam no poder paternal nas famílias. Infelizmente, isso foi implementado tão logo Angola alcançou a independência.

Esse comportamento foi se tornando cada vez mais presente na mesma proporção em que se afirmava uma Angola comunista e isso foi marcando também o surgimento de líderes messiânicos, que aos poucos foram assumindo de forma intensa a posição de “pai” ou “mãe” do povo fazendo valer as suas vontades sobre a maioria.

Essa falsa ideia de pai é perigosa pois, tal como imperou no colonialismo, para o contexto da Angola independente os objectivos não estão longe dos ideais imperialistas, através do qual era necessário fazer valer a falsa ideia de pai para manter e ampliar o seu poder, custe o que custar para melhor dominar. Trata-se de um propósito que, embora lento, vai manifestando a vontade de governantes despóticos das lideranças messiânicas que só sabem dominar e fazer valer as suas vontades por meio da força ou de outras vias de dominação. Foi assim em toda a história da civilização, foi assim durante o período colonial e continua sendo, 45 anos depois.

Mas isso não é somente uma questão de querer ser, é acima de tudo um acto de “inteligência” da parte dos líderes de modos a encontrar formas seguras para impedir possíveis oposições. 

E, para que um governo possa ter certeza de que não haverá contestatários, nem insurreições da população, a medida imprescindível a tomar é controlar as instituições, públicas e sociais dentre as quais a família, de uma forma a que ninguém possa perceber e dando algumas vezes, por meio dos discursos, a ideia de que existe abertura e liberdade das pessoas e instituições para se posicionarem sobre várias matérias. Porém, nalgumas faz-se também passar a ideia de que há uma voz que deve ser ouvida e contra ela ninguém se pode opor, é a voz dos governantes. Foi nesta perspectiva que surge entre os angolanos a famosa frase: “menino não fala política”, a única forma de fazer imperar a mentalidade do medo entre os angolanos. Isso inibe o exercício da cidadania, um direito fundamental, fazendo passar a ideia de que apenas alguns podem falar de política.

Como já temos apresentado em outros textos, insistindo na necessidade do senso crítico, percebe-se que a incapacidade crítica é fatal e uma sagrada oportunidade para a nulidade das garantias e liberdades fundamentais dos cidadãos. Pois, quando todas as possibilidades estiverem sob o comando do governo, ele poderá fazer qualquer coisa com o seu povo, sem nenhuma resistência, sem nenhum risco de ser deposto ou combatido. Ou seja, o controlo das instituições e de certas pessoas tem um único objectivo: o controlo social, ter domínio de tudo. Parece algo difícil de acreditar? Parece exagero ou uma teoria conspiratória?

Bem, um pouco de história pode ajudar a esclarecer a questão.

Angola foi ocupada pelos portugueses, numa expedição comandada por Diogo Cão. Uma dominação que durou quase 500 anos. Passados 45 anos, desde que Angola deixou de ser colónia portuguesa, o país vive a pior miséria, superando o período do conflito armado.

Claro que, não muito diferente do que acontecia na era colonial, as restrições no acesso aos serviços sociais, sobretudo ao ensino, continua a ser uma regra do governo, mesmo que de forma indirecta. Angola continua dividida entre os privilegiados e os não privilegiados, igual ao período colonial, entre os assimilados e os não assimilados e/ou indígenas.

Sabemos, que o termo assimilado tinha a sua importância no contexto da colonização, foi “um tipo específico de sujeito criado pela colonização portuguesa”, uma pessoa  para ter privilégios precisava “ se destribalizar”, abrindo mão da sua cultura, ou seja, negando a sua identidade e, tornando-se inimigo dos seus co-irmãos, nalgumas vezes oferecendo ou vendendo-os como escravos.

«Se na era colonial muitos preferiram “destribalizar-se”, para o nosso contexto, e porque as pessoas se tornaram ventríloquas, as suas auto-negações colocaram em cheque as suas liberdades pois, tornaram-se manipuláveis.»

Hoje, vivemos as mesmas situações, as segregações intensificam-se. Vemos um grupo que tomou de assalto o património dos angolanos, um grupo que é capaz de escolher quem pode e quem não pode, levando a que muita gente se torne bajuladora em troca de benefícios e alguns até em sipaios, infiltrando-se nos grupos opositores, apenas para merecerem favores e regalias. Se na era colonial muitos preferiram “destribalizar-se”, para o nosso contexto, e porque as pessoas se tornaram ventríloquas, as suas auto-negações colocaram em cheque as suas liberdades pois, tornaram-se manipuláveis.

Se para o período colonial, a necessidade de restringir as liberdades e, sobretudo, o acesso ao ensino tinha como objectivo dificultar a produção de conhecimentos, inviabilizar a formação de grupos que pudesse ameaçar o poder colonial, para o nosso contexto, os objectivos não estão longe daqueles defendidos pelo poder colonial. Pois, no nosso caso, além do sistema reproduzir as desigualdades impossibilita também a crítica.

Pelo que sabemos, houve no período colonial um maior controlo no acesso à instrução académica, ainda assim, e porque diz a história, isso não foi suficiente para impedir o surgimento de movimentos que, mais tarde, se empenharam nas lutas contra a dominação. Um controlo que foi incapaz de impedir, por exemplo, o surgimento da Liga angolana, a Liga Nacional Africana, o Grêmio Africano e muitas outras Associações Culturais que influenciaram as lutas e que culminou com a conquista da Independência Nacional, no dia 11 de Novembro de 1975.

Esta reflexão é importante? Sim, pois vivemos momentos difíceis e a busca pelos arquivos da história fazem-se importante para melhor compreendermos de onde viemos e onde estamos, por um lado. Por outro lado, esta reflexão impõe-se como forma de combater as falsas histórias sobre o país e, sobretudo, a vontade defendida de se resolverem os problemas do povo, pois como notamos as condições de vida dos angolanos pioram significativamente. Cresce o número de desempregados, piora os sistemas de saúde e de educação. Enfim, volvidos 45 anos não foi possível um plano de Nação.

No momento áureo da nossa economia, e na lógica da segregação, vimos a insensibilidade do governo que foi incapaz de resolver os problemas das populações, mesmo quando o lema da campanha eleitoral de 2012 foi: “ produzir mais para melhor distribuir”. Tudo isso não passava de mero populismo.

Quantas mortes por malária, febre-amarela e, outras enfermidades foram evitadas? O que foi feito para tornar o sistema de saúde adequado às nossas doenças? Diante de toda incompetência foi construído o maior cemitério ─ o do Benfica ─, que segundo os dirigentes daquela época era o maior feito para a Província de Luanda, por ter sido o maior do continente! Um governo que se vangloria com a construção de um cemitério, independentemente do tamanho, precisa ser levado a sério?

Esta é a nossa realidade e, por isso não nos deveríamos esquecer da história e dos problemas que vivemos todos os anos. 

A nossa história, deve ser tida em conta sempre que nos colocamos a reflectir sobre o país, na intenção de encontrarmos soluções. Foi por isso que nos propusemos a escrever este texto que procurou apresentar pontos de convergência entre o colonialismo e o momento pós-colonial, uma analogia importante para entendermos onde queremos chegar como povo e como chegar lá.

Somente olhando para isso será possível ressignificar a luta, fazendo valer o poder da cidadania, muita das vezes confundida com militância política. Daí que, para nós, pensar Angola é fundamental e, é também fundamental a imperiosa necessidade à luta pela transformação da maioria social para a maioria política. Isso é extremamente relevante se quisermos vencer a batalha dos monopólios e da segregação.

(…) estabelecer um novo compromisso social onde valores como a democracia, a justiça social são possíveis…

Tal como se tem dito “todo povo ou nação que perde uma guerra é obrigado a entregar as armas ao vencedor”, sem excepção. E isso tem um grande significado para o país que há muito tem vindo a reclamar pela forma como o país tem sido gerido, pela ineficácia das políticas públicas fruto ainda da partidarização do aparelho do Estado que, no fundo, tem estado na base da descriminalização do angolano pelo angolano que com ela vão aos poucos ressurgindo as acções de intolerância e outros, colocando a maioria social em desvantagem.

Será que consegue ver isso? Consegue ver que há ainda um lado que perde sempre e, é a maioria? Não há perdedores do lado dos governantes, pois eles contam com um aparato de segurança muito superior e exclusivo, tornando-a partidária, quando ela deveria ser republicana. Perdemos a luta quando admitimos que faltam medicamentos nos hospitais por receberem pouco ou quase nada do OGE. Perdemos a luta quando, em pleno século XXI muitos angolanos ainda estudam debaixo das árvores.

É nisso onde começamos a perder a batalha! Ou, será que é desta vez que a história será revertida?

Pense nisso!

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