Idosos em tempo de pandemia: “selecção do paciente não pode ser feita em função da idade”

Idosos em tempo de pandemia: “selecção do paciente não pode ser feita em função da idade”

O medo generalizado, a incapacidade de respostas de todos os sistemas de saúde, como temos visto; a escassez de ventiladores, camas e máscaras; a obrigação de nos afastarmos, em sinal de cuidado e amor pelos outros. A pandemia está a obrigar toda a gente ─ cidadãos, governos, médicos ─, a escolhas éticas que nunca imaginámos. A mais dramática talvez seja a que se coloca aos profissionais de saúde que têm de decidir a quem atribuir o ventilador, quem vive e quem morre. (…) Ética em tempo de pandemia é razão para termos a Professora Maria do Céu Neves. É a catedrática de Ética, perita em Ética da Comissão Europeia. Está afastada em isolamento. Muito obrigado pela sua disponibilidade!

Q – A primeira questão ética que tenho para lhe colocar é esta ─ eu vou tentar fazer as minhas equações de uma forma mais sintética possível ─, saúde ou economia? Isto porque alguns políticos resistem a aplicar as medidas mais drásticas, do ponto de vista do confinamento das pessoas e de restrição das liberdades, porque dizem que a doença não pode matar a economia, portanto, a questão número um é ética.

Maria Neves – Bem, eu penso que o fundamental daqui é nunca vermos a realidade em termos alternativos, ou a saúde ou economia. A sabedoria está em tentar encontrar a melhor forma para tratar de ambas, da saúde e da economia, sendo certo que no actual estado de epidemia, melhor da pandemia em que nós vivemos, a saúde ganha prioridade. E se ganha prioridade, mas importa também atender para os cuidados a ter em relação à economia. Até mesmo porque, todos os problemas que serão colocados à economia, que estão a ser colocado à economia, vão ter uma duração muito mais longa, vão perdurar no tempo. Nós estamos ainda com muita esperança que depois destes meses de combate ao Covid-19 consigamos sobreviver, a maioria com saúde e sem sequelas. A economia terá um efeito em todos nós muito mais devastador. Por isso, não vejamos entre uma coisa e outra, mas tentar medidas que sejam cuidadoras de ambas, sem perder a prioridade da saúde.

Q – Segunda questão sobre a saúde. Os testes, na esmagadora maioria dos países estão em escassez, pela pouca disponibilidade deles no mercado. Muitos dos que foram comprados, testes rápidos, são afinal muito enganadores em relação aos resultados, e aparentemente uma das empresas fornecedoras chinesa não estava certificada para esta tecnologia. Em muitos países os testes estão a ser feitos a quem apresenta sintomas. Isto parece-lhe adequado ou vale a pena ponderar, nomeadamente no que diz respeito às comunidades mais fragilizadas, como lares de idosos em ambiente fechado, que sejam generalizados os testes sempre que possível?

MN – Repare, no melhor dos mundos possíveis haveria recursos para satisfazer as necessidades de todos. Esta não é a nossa realidade, não é um mundo real, e muito menos numa situação que vivemos de pandemia. E por isso, o que nós temos que fazer é uma optimização dos recursos existentes. E esta optimização vai exigir que sejam disponibilizados os testes possíveis àquelas comunidades que estão em maior risco. Certamente que os profissionais de saúde são uma comunidade, que estão extraordinariamente expostos, e de quem toda a sociedade depende, e por isso este é certamente um grupo prioritário para ser testado, e todos os outros segmentos da sociedade que estão em particular risco, nomeadamente os idosos. Mas deixe-me acrescentar: os testes não podem ser considerados como panaceia. Todos nós gostaríamos de fazer testes, é verdade. Mas eu posso fazer um teste hoje, e se não me mantiver no isolamento profilático, eu posso ser infectada amanhã, e posso ser transmissora depois de amanhã. Por isso, o teste é importante, sem dúvida nenhuma, não estou a minimizá-lo, mas, de facto, a medida hoje mais urgente para todos nós é o isolamento profilático. Esse é que vai de uma forma mais eficaz mitigar a transmissão, que já está dentro da comunidade, mas que todos nós [somos] potenciais transmissores efectivamente.

Q – Nós. É. Quem tem trabalhado todos os dias sabe disso muito bem, e reflecte sobre isso, e é importante partilhá-lo com todas as pessoas nesta altura. A questão que tem sido mais dramaticamente encarada nos países, sobretudo em Espanha e Itália que têm enfrentado uma incidência da doença muito séria, é questão da escassez de ventiladores e de camas nas unidades de cuidados intensivos. Quem escolher, com critério, quem é que deve escolher? É justo pedir a um médico que decida quem é que vai sobreviver ou quem é que não vai sobreviver?

“(…) há muito tempo que nós vivemos uma discriminação do idoso, uma discriminação tácita e consentida”

MN – São muitas questões numa só e todas extraordinariamente difíceis. É bom que tenhamos consciência que a selecção de pacientes para acesso a recursos de saúde não é uma novidade de hoje. É uma realidade que há muitas décadas se instalou entre nós, mas que se agrava necessariamente em situações de crise, como seja de guerra, como é a de pandemia. De facto, a necessidade [de] fazer uma selecção de pacientes decorre da escassez de recursos. E não tenhamos ilusões: jamais haverá em qualquer sociedade os recursos suficientes para as necessidades de todos. Por isso, o que nós verificamos agora não é uma realidade nova em si, mas tem um volume e um dramatismo, esses sim, verdadeiramente ímpares. Importa, importa escolher. Quem vai escolher? Foi uma das perguntas que me fez. As razões têm que ser sempre médicas. Os critérios têm que ser maximamente justos. E eu poderia dizer que os critérios nunca se podem, não se podem centrar na pessoa, no sentido das suas características que não são clínicas. Isto é um critério médico, aponta sempre para a necessidade, prognóstico. Qual é o prognóstico daquela pessoa!?

Q – A sobrevida, a possibilidade de sobrevida…

MN – Exactamente. Para a optimização dos recursos, é importante que os escassos recursos [que] estão disponíveis, que sejam utilizados naqueles que podem ter uma sobrevida maior e uma qualidade de vida maior. Por isso, isto é um critério objectivo, é um critério racional, que não valoriza as pessoas ou desvaloriza em função de qualquer característica, inclusivamente a idade. As pessoas não podem ser descartáveis em função da idade. Por isso, de facto, o que nós temos é a avaliação do estado clínico de cada um dos doentes, temos e certamente o devemos ter do ponto de vista ético, [a] avaliação do clínico do doente, e perante os recursos disponíveis perceber qual é que pode sobreviver, qual é o que tem mais garantias de sobreviver. Há situações, e em Itália, isto tem-se verificado, que há situações em que [a] situação, o estado clínico do paciente está de tal forma deteriorado que ele é encaminhado para cuidados de conforto e não propriamente de cuidados terapêuticos. Mas, deixe-me deixar muito claro a afirmação de que esta selecção do paciente não pode ser feita em função da idade. Estaríamos então numa situação de racionamento dos cuidados. Os cuidados são só para alguns, são escassos ou só para alguns e não para todos. Eu rejeito a possibilidade do racionamento dos recursos, mas falo sim de uma racionalização dos recursos, isto é, optimizá-los. Se nós estivéssemos a falar em racionamento de recursos podíamos, por exemplo, dizer [que] uma pessoa com mais de 80 anos, ou mais 75 ou mais de 70, já estaria excluída destes recursos. Com “informação desta”, que tem passado um bocadinho nas redes sociais, e que não é admissível do ponto de vista ético. O que nós podemos dizer é que uma pessoa mais idosa terá necessariamente um prognóstico mais que reservado. Mas isso não significa que em todas as situações seja preterida em favor dos mais novos. Além de que…

 

“(…) deixar muito claro a afirmação de que esta selecção do paciente não pode ser feita em função da idade”

Q –  Duas senhoras, uma de 95 e outra de 96 anos, que recuperaram e estão curadas depois de terem tido a doença.

MN – Se me permitir dizer, quando nós avaliamos as pessoas para acesso aos cuidados em função da idade, nós estamos a violar o princípio da dignidade humana. O princípio da dignidade humana diz-nos que todos nós temos o mesmo valor, absoluto e incondicionado, independentemente das características. Nós, há muito tempo que na nossa sociedade, rejeitamos avaliar pessoas a partir da sua etnia, da sua religião, do seu género, da sua orientação sexual. Nós não avaliamos as pessoas em função de características. Ora a idade é mais uma característica, as pessoas não podem ser avaliadas em função da idade. Até mesmo, e este era o aspecto que ainda há pouco ia introduzir, e penso que tem interesse também para a nossa reflexão conjunta, nós todos envelhecemos diferentemente, a nossa idade cronológica não coincide às vezes com nossa idade biológica. O que significa que essas senhoras de 95, 96 anos podem ter uma idade biológica bem mais jovem do que a sua idade cronológica. Daí a injustiça tremenda que seria fazer a selecção de pacientes para acesso aos escassos recursos únicos e exclusivamente em função da idade e da idade cronológica. Seria eticamente inadmissível e contrariava todos os princípios axiais que nos têm feito chegar ao nosso presente, como uma sociedade democrática e pluralista, e respeitadora de todos por igual.

“Nós não avaliamos as pessoas em função de características (…) as pessoas não podem ser avaliadas em função da idade (…) nós todos envelhecemos diferentemente, a nossa idade cronológica não coincide às vezes com nossa idade biológica”

Q – Tenho mais duas questões, e gostava de encontrarmos tempo para ouvir a sua opinião. Uma tem a ver exactamente com a idade, mas de outra forma. A indiferença que temos registado de alguns jovens em relação aos comportamentos sensatos e adequados a ter com o pensamento que ‘doença atinge sobretudo os mais velhos’. Portanto, passa-lhes ao lado. Como é que avalia do ponto de vista ético este comportamento?

MN – A doença atinge a todos. Mas é verdade também que tem uma letalidade bem superior nos que são mais idosos. Eu, do ponto de vista ético, e sobretudo analisando a nossa sociedade, atrevo-me a dizer que há muito tempo que nós vivemos uma discriminação do idoso, uma discriminação tácita e consentida. É muito frequente ouvirmos comentários desagradáveis acerca dos mais velhos, e única e exclusivamente citado pela sua idade, comentários estes que jamais aceitaríamos em relação a pessoas mais jovens e em função de qualquer uma das outras suas características. Por isso é bom que nós pensemos que há muito tempo que nós discriminamos os mais velhos. O que acontece agora é que se tornou evidente que os mais velhos, pelos mais novos, estão efectivamente a ser discriminados. Lembremos aquilo [que] foi dito nos Estados Unidos também: que os mais velhos tinham que [se] sacrificar pela sociedade, ou então dito por grupos de jovens que ‘afinal aqueles eram apenas velhos e que já não faziam falta’. Mais uma vez se nós não protegermos todos por igual como na nossa sociedade, é a nossa própria sociedade, o nosso modo de vida, os nossos valores que estão a ser postos em causa. E quando nós assistimos ao aumento de letalidade e de infecção nos mais velhos, como ainda há pouco mostrou, então nós temos razões para nos preocuparmos.

Q – Seria a barbárie se isso não fosse tido em consideração, pelo menos a esmagadora maioria das pessoas, nas organizações, e dos governos. Professora, mas além do profundo egoísmo, se me permitir dizer, além do profundo egoísmo, aquilo que não me afecta a mim eu posso viver com. Além de ser errado do ponto de vista clínico e tremendo do ponto de vista ético, do ponto de vista da identidade pessoal não abona muito a favor de cada um. (…) Professora Maria do Céu Neves, e sobre a ética da vacina quando ela estiver disponível, para quem é que ela poderá ir? Vamos ter seguramente uma outra oportunidade…

Foto//rmc

MN – A vacina vai ser descoberta certamente por um consórcio internacional e isto vai ser a garantia que alguns políticos, (…) não vão açambarcar a vacina para eles, e ela estará disponível para a população, começando pela mais necessitada. Obrigada.

Q- Muito obrigado.

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Recapitulação:

  • A ética dos fins, o princípio da dignidade e os fundamentos axiais da democracia rejeitam a escolha de pacientes tendo a idade como critério.
  • “(…) os problemas que serão colocados à economia, que estão a ser colocado à economia, vão ter uma duração muito mais longa, vão perdurar no tempo”
  • “Os testes não podem ser considerados como panaceia (…) eu posso fazer um teste hoje, e se não me mantiver no isolamento profilático, eu posso ser infectada amanhã, e posso ser transmissora depois de amanhã (…) a medida hoje mais urgente para todos nós é o isolamento profilático”
  • “É bom que tenhamos consciência que a selecção de pacientes para acesso a recursos de saúde não é uma novidade de hoje”
  • “Eu rejeito a possibilidade do racionamento dos recursos, mas falo sim de uma racionalização dos recursos, isto é, optimizá-los”
  • Segundos os fundamentos da Bioética, a escolha sobre a vida e a morte não é uma questão exclusivamente médica. É também política em sentido lato.

*Observatório da Imprensa e TVI.

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