Lei Eleitoral: um passo falso da soberania popular

Lei Eleitoral: um passo falso da soberania popular

Chipilica Eduardo*ǁ Em Angola existem factores essenciais para a corrupção eleitoral, manipulação e instrumentalização de imprensa – o controlo remoto da Comissão Nacional Eleitoral, o discurso bélico e de terror, mais virado para as populações longínquas, sem instrução e sem serviços sociais básicos.

Enquadramento histórico. A narrativa histórica da luta de libertação nacional do jugo colonial português começou oficialmente a 4 de Fevereiro de 1961, pelos nacionalistas, mais tarde liderados por António Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi. Entre avanços e recuos, os três movimentos subscreveram os Acordos de Alvor e  o Estado Português reconheceu os movimentos de libertação – a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA); Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNLTA) – como os únicos e legítimos representantes do povo angolano. A 11 de Novembro de 1975, a independência e soberania plena de Angola é solenemente proclamada, pelo Presidente da República Portuguesa, ou por um representante seu, expressamente designado, como explícito no art. 1º e 4º dos Acordos de Alvor, de 15 de Janeiro de 1975. Até à proclamação da independência nacional, o poder seria exercido por um Alto-Comissário e por um governo de transição que incorporasse membros de todos os movimentos. Posteriormente, seriam realizadas eleições para a Assembleia constituinte.

Nas vésperas da proclamação da independência, os interesses ideológicos, político-partidários, da burguesia impuseram um nacionalismo puro, tendo o MPLA tomado a dianteira, com o apoio dos cubanos e soviéticos, proclamando unilateralmente a República Popular de Angola. “Em nome do povo angolano e do Comité Central do MPLA, proclamo solenemente perante África e o Mundo, a independência de Angola. O MPLA declara o nosso País, constituído em República Popular de Angola”, declarou António Agostinho Neto, no seu discurso, no acto da proclamação da independência. Esta foi a única declaração reconhecida internacionalmente, pois as proclamações da UNITA e FNLA não produziram os efeitos desejados. Assim, a recém-nascida República mergulhou na guerra entre o poder imposto e os excluídos. Uma guerra que durou cerca de 27 anos de dor e luto. Por um lado, uma luta entre inimigos comuns; por outro, a aniquilação – dentro dos próprios movimentos – de homens, mulheres e crianças, sempre que a liderança sentia insurreição interna ou ameaças, que resultaram em dias negros, como a sexta-feira sangrenta, queima de bruxas, o 27 de Maio e outros eventos dramáticos. Uma carnificina à moda angolana pelo poder do poder.

Com o acordo de Bicesse, a 31 de Maio de 1991, assinado pelo poder homogéneo e os beligerantes, MPLA e UNITA, houve um calar provisório das armas e bombardeamentos, que trouxe o fim da guerra, a paz e a reconciliação nacional. Realizaram-se eleições livres e justas, instalou-se a economia de mercado, o multipartidarismo, a liberdade religiosa e a soberania popular. De República Popular de Angola, o país passou a República de Angola, Estado democrático e de direito, embora formal. Este é um processo que culminou nos dias 29 e 30 de Setembro de 1992, com a realização das primeiras eleições legislativas e presidenciais, vencidas pelo MPLA e pelo presidente José Eduardo dos Santos, com 53,74% e 49,57% dos votos válidos. Em segundo lugar ficou a UNITA e Jonas Savimbi, com 34,10% e 40,07% dos votos válidos. As eleições foram contestadas pela UNITA, alegando uma fraude generalizada. A segunda volta das eleições presidenciais nunca foi realizada e o país retomou a guerra, que durou durante mais 10 anos, terminando depois da morte em combate de Jonas Savimbi, a 22 de Fevereiro de 2002.

Nesse período, é assinado o Memorando de Entendimento de Luena, complementando os acordos de Lusaka, assinada entre o governo e a UNITA, trazendo a paz que perdura até aos dias de hoje, a partir de 4 de Abril de 2002: Dia da Paz e da reconciliação nacional. Iniciou-se um novo círculo eleitoral, no entanto, o regime não se mostrava disponível para realizar eleições no imediato, esperando até 2008, pois pretendia receber doações internacionais para reconstruir o país. Contudo, as fortunas dos membros do topo fracassaram o plano e recorreram a um empréstimo chinês, fazendo obras descartáveis, enquanto rios de dinheiros transbordavam dos seus bolsos. As obras de reconstrução nacional eram propaganda eleitoral.

Uma falsa soberania popular

Em 2005 foi aprovado o pacto legislativo eleitoral, três anos depois do alcance da paz, mas as eleições legislativas só foram realizadas em 2008, com a vitória por maioria absoluta do MPLA, que obteve 81,6% dos votos válidos, conquistando assim 191 lugares de deputado. A UNITA, conseguiu 10,3% dos votos válidos, obtendo 16 deputados e mantendo o estatuto de maior partido da oposição. Em 2009, o povo aguardava, expectante, as eleições presidenciais. O poder instituído jogava um novo quadro constitucional, em 2010, alterando o modo de eleição presidencial de directa para indirecta – é eleito Presidente da República o cabeça de lista do partido mais votado, e os demais integrantes da lista seriam eleitos deputados. O ‘pai da Constituição de 2020’, o Professor Dr. Carlos Maria Feijó, denominou-o de “voto conjugado obrigatório”, ou seja, o eleitor não tem opção, votando simultaneamente no partido político e no candidato, “um voto, voto duplo” – um único boletim, duas escolhas.

O apuramento provincial e municipal: uma dor de cabeça para o regime

Presidente da CNE, Manuel da Silva (à esquerda) e Presidente da República, João Lourenço (à direita).

Entre 2008, 2012 e 2017, apesar do quadro eleitoral prever o apuramento provincial e municipal, o regime e os seus tentáculos nunca deixaram que isso acontecesse. Criaram-se centros locais, provinciais e municipais, cuja única finalidade era enviar actas das Assembleias de Votos (Actas das Operações Eleitorais), ao centro de escrutínio nacional. Por sua vez, este órgão publicava os resultados eleitorais por todo o país. Acontece que, quer os membros da Comissão Nacional de Eleitoral, quer a população em geral, dependiam somente de Luanda, para saberem os resultados das suas localidades.

Este método impedia a oposição de confrontar os resultados obtidos e divulgados, não obstante a presença de delegados das suas listas (fiscais eleitorais), nas Assembleias e Mesas de voto. A maioria parlamente, para legitimar a fraude através do pacote eleitoral, retirou o apuramento provincial e municipal, fundamentando que nunca se tinha realizado, levando à sua revogação. Embora parece uma teoria aceitável, o mais provável é esta alteração possibilitar a adulteração dos resultados recebidos de todo o país, manuseados por Luanda, com acesso restrito a figuras estranhas, a lisura e a verdade eleitoral estando no centro do escrutínio. A retirada do apuramento provincial e municipal da lei, foi aprovado apenas com o voto do MPLA, na Lei de Alteração à Lei Orgânica sobre as Eleições Gerais. No dia seguinte, através de uma conferência de imprensa, a oposição parlamentar saiu em bloco, denunciando as intenções maléficas e pedindo ao Presidente da República, João Manuel Gonçalves Lourenço, para não a promulgar. Jogada de mestre de xadrez, ou não, o Presidente da República parece ter ouvido e, segundo o comunicado oficial, “solicitou à Assembleia Nacional a reapreciar algumas matérias, com objectivo de reforçar, nalguns domínios, os instrumentos que garantam uma maior igualdade entre os concorrentes, são concorrência, lisura e verdade eleitoral, no quadro da permanente concretização do Estado democrático e de direito”, nos termos do art. 124º, nº2, da Constituição da República de Angola (CRA).

A reapreciação pedida pelo Presidente da República não demonstrou os artigos da lei aprovada, que na sua óptica tinham de ser ajustadas à lisura e verdade eleitoral. Todavia, criou-se a expectativas sobre o apuramento provincial e municipal. O art. 124º da CRA, efectivamente, apresenta a possibilidade aos parlamentares de acatarem a solicitação de João Lourenço, alterando ou modificando, nos termos sugeridos. Por outro lado, a Bancada Parlamentar do MPLA pode manter o diploma original, ou seja, da forma como foi aprovado na primeira vez, ignorando o Presidente da República que tem mais de 2/3 dos deputados. Neste caso, o Presidente da República é obrigado a promulgar o diploma, no prazo de 15 dias. A hipótese alternativa, é pedir aos Venerandos Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional para fiscalizarem a constitucionalidade do diploma, expurgando possíveis normas inconstitucionais. Porém, por causa da lealdade e de um culto da personalidade e adoração a João Lourenço, dificilmente os deputados do MPLA iriam contrariar o Chefe de Estado. É uma forma de mostrar à opinião pública que não existe promiscuidade entre os assuntos do partido e o Estado. Na fotografia, o Presidente sai sempre bem, mantendo o papel de pacificador.

Voltando ao apuramento municipal, a oposição pretende que os órgãos locais da Comissão Nacional Eleitoral, façam a divulgação dos resultados nas suas áreas de jurisdição, após análise, discussão e deliberação das reclamações apresentadas pelos delegados das listas ou concorrentes. Estes resultados, e as respectivas actas das Assembleias de Voto, ou Operações Eleitorais, deveriam ser enviadas às sedes provinciais que, após deliberação, divulgariam os resultados gerais provinciais. Por fim, esses seriam enviados à Comissão Nacional Eleitoral, que faria a divulgação final. Este é o modelo que a oposição quer instaurar, impossibilitado pela Comissão Nacional Eleitoral que está açambarcada pelos órgãos que constituem uma Comissão que atua na sombra e que comanda o processo.

A fraude construída: um edifício.

Os manuais de História estão repletos de instruções e fórmulas para constituir fraudes eleitorais. Em Angola existem factores essenciais para a corrupção eleitoral, manipulação e instrumentalização de imprensa – o controlo remoto da Comissão Nacional Eleitoral, o discurso bélico e de terror, mais virado para as populações longínquas, sem instrução e sem serviços sociais básicos. Se for aceite o apuramento provincial e municipal, os eleitores saberão da “sentença eleitoral localmente”, ou seja, dos seus próprios resultados, sem esperar por Luanda. Isso significaria que o regime teria de aperfeiçoar o seu modelo, articulando e reapreciando os métodos de caça aos votos, pelo que não é inteligente a oposição se preocupar apenas com a contagem dos votos, sem combater os outros factores extra votos.

O impasse eleitoral não é somente a legislação, passa necessariamente por um manual de instrução de controlo do poder absoluto, por uma oposição que inclua pessoas comprometidas com bem-estar de todos e cidadãos honestos, que não usem a luta pela liberdade, nem o sangue inocente do povo, para granjearem prestígio e poder financeiro, sem nada de mudança à vida do angolano.

Por conseguinte, o momento é de um Moisés angolano.

*Activista Social.

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