O Movimento Jovens pelas Autarquias e o novo paradigma de participação (2/2)

O Movimento Jovens pelas Autarquias e o novo paradigma de participação (2/2)

João Manuel dos Santos│No entanto, essas novas organizações assumem-se como o continuar de um movimento contestatário que começa a surgir nas ruas de Luanda no verão de 2011. Pois que, grande parte dos jovens que integra MJpA são activistas com experiências de participação cívica conseguidas das lutas conduzidas por este movimento contestatário e que tinha como principal objectivo a destituição do então presidente José Eduardo dos Santos que se encontrava no poder desde 12 de Setembro de 1979. Nota-se também que esses jovens activistas têm um domínio do espaço político em que actuam, bem como uma capacidade notável de perceberem os contextos, aliás, a forma como se encontram organizados hoje reflecte, precisamente, esta capacidade, sendo certo que no contexto de Eduardo dos Santos, tal como já vimos atrás, era mais difícil a constituição de organizações juvenis com vocação política sem vínculos partidários e que se apresentassem contra o regime.

Entretanto, existe porém, uma nítida distinção entre as organizações que compõem o MJpA e as tradicionais OSC que começaram a surgir na década de 90 após a instituição formal da democracia em Angola, esta distinção faz das organizações que compõem o MJpA pioneiras de um novo paradigma de participação política e cívica. Esta distinção pode ser feita com base em três critérios: (i) do objecto; (ii) do âmbito; e (iii) da natureza. Analisaremos, de seguida, cada um desses critérios.

Começando pelo primeiro, o critério do objecto. Essas organizações distinguem-se das tradicionais OSC, pois enquanto estas últimas concorrem para um conjunto de serviços sociais reflectidos nos seus objectos, e que estão fora da cobertura das políticas públicas, sendo os mesmos indispensáveis para o bem-estar económico e social dos cidadãos as primeiras têm como objecto o Poder Local Autárquico, ou seja, elas visam concorrer nas Eleições Autárquicas nas suas respectivas circunscrições municipais.

Quanto ao segundo, o critério do âmbito. Segundo este critério, as organizações que compõem o MJpA vão distinguir-se das tradicionais OSC pelo facto de as primeiras serem, todas elas, essencialmente comunitárias. Ou seja, cada uma das organizações que compõem o movimento tem como área de jurisdição o município da sede da organização, portanto a sua preocupação prende-se, única e exclusivamente, com os problemas socioeconómico do seu município, descurando, deste modo, os problemas de outros municípios, embora poderá, em determinados momentos, no âmbito daquilo que chamamos de espírito de patriotismo, solidarizar-se com os problemas do outro município. Contrariamente, as tradicionais OSC têm um âmbito mais alargado (normalmente nacional) e mesmo aquelas que têm o seu âmbito mais restrito têm a faculdade de estabelecerem parcerias com outras organizações (de âmbito nacional ou local) e, deste modo, estenderem os seus objectivos fora das suas circunscrições o que não acorre com as organizações do MJpA.

Finalmente, o critério da natureza. Sobre este critério há que esclarecer o seguinte: a distinção entre os dois grupos de organizações assenta no instrumento jurídico que deles resultam. Na verdade, e em bom rigor, os dois grupos de organizações classificam-se como OSC. Entretanto, com base neste critério, as tradicionais OSC, como é o exemplo da AJPD, da ADRA, da Omunga, da Associação Mãos Livres, etc., surgiram/surgem na base da Lei das Associações e, portanto, são reguladas pela mesma, encontrando aí o seu regime jurídico, por esta razão recebem a designação de Associações Privadas, assumindo assim esta natureza ao passo que as organizações do MJpA surgem na base da Lei Orgânica Sobre as Eleições Autárquicas que estabelece igualmente os seus regimes jurídicos devendo, desta feita, receberem a designação de “Grupos de Cidadãos Eleitores”, uma figura sui generis que encontra acolhimento na CRA, no seu nº 5 do art 220º. Daí que assumem a natureza de Movimentos Sociais.

Movimento Jovens pelas Autarquias e participação na vida pública

Se durante muitos anos o movimento contestatário que foi emergindo nas ruas de Luanda teve como principal fundamento da sua causa de luta a ‘longevidade do ex-presidente JES no poder’ encontrando o desabafo no slogan “32 é muito” hoje, com a retirada de JES no poder, a causa passa a ser justificada pela continuidade da “Velha Estrutura” na governação do país desde a independência e por um Poder Centralizado. Com a institucionalização das autarquias locais o país terá como resultado uma administração descentralizada, isto poderá permitir uma maior aproximação dos serviços públicos aos cidadãos.

Porém, tendo em conta a complexidade desse processo para o caso de Angola, que para além de ser um fenómeno novo o cidadão comum desconhece no seu todo devido ao baixo grau de informação sobre o assunto, a necessidade de informar o cidadão sobre essa nova realidade revela-se imperiosa de modo a prepará-lo para este novo desafio e garantir sua participação directa no processo, tornando este mais inclusivo e participativo. Nesse sentido é notório o trabalho feito por essas organizações no interior das suas comunidades que vai desde a realização de debates, palestras, seminários de capacitação, etc., todos sobre a temática das autarquias locais.

A razão por detrás do impacto positivo desses trabalhos comunitários é a preferência às comunidades, os espaços humildes onde os mesmos são realizados, permitindo a participação de cidadãos dos mais variados estratos sociais. A participação local, segundo Jonh Stuart Mill, é eficiente na medida em que garante melhores resultados. Ainda nas palavras deste grande estudioso da participação política é precisamente ao nível local onde o cidadão deve começar a sua participação na vida pública, primeiro porque ao fazê-lo, o cidadão estaria a contribuir para a resolução dos problemas da sua própria comunidade, segundo porque a participação local tem um efeito educativo. Ou seja, na medida em que o cidadão participa na vida da sua comunidade não só poderá facilmente influenciar outros membros da comunidade que com ele vive os mesmos problemas como também estará a auto-preparar-se para melhor participação na vida nacional, pois, quanto mais o cidadão participa mais estará habilitado para o fazer – este processo Mill denomina-o como “efeito educativo da participação”. (Carole, 1992).

Há ainda que considerar algumas acções cívicas realizadas por estas organizações fora das suas jurisdições, embora aqui elas actuam de forma conjunta. Na verdade, não se trata de uma pretensão ou eventual extensão dos seus objectivos. Trata-se, porém de actos de exercícios de pressão sobre as entidades competentes na condução do processo de institucionalização das autarquias locais com vista a adoptarem posturas que contribuem para o andamento normal do processo. Essas pressões são feitas com recurso a instrumentos democráticos próprios, tais como petições públicas, denúncias, reclamações formais, protestos, etc.

Um exemplo concreto do que acabamos de dizer é, justamente, a proposta de projecto de iniciativa legislativa adaptada às propostas de Lei do Pacote Legislativo Autárquico, elaborado pelas organizações Projecto AGIR e a PLACA, remetida à Assembleia Nacional através das bancadas parlamentares da FNLA, do MPLA, da UNITA, da CASA-SE e do PRS e ao Titular do Poder Executivo, no dia 09 de Abril de 2019. Na referida proposta essas organizações defendiam um conjunto de posições diversas das muitas constantes do Pacote Legislativo Autárquico, por exemplo, que o candidato à Câmara Municipal fosse um munícipe que reside pelo menos 2 há 5 anos no Município; que os representantes das assembleias municipais tivessem o direito a uma remuneração; que a proposta de Lei de Institucionalização das Autarquias Locais fosse afastada do Pacote Legislativo Autárquico por se tratar de uma manobra do MPLA para a efectivação do “Gradualismo Geográfico”. Essas e várias outras posições foram e continuam a ser defendidas por essas organizações.

Na sala de conferência mártires do Kifangondo. Seminário sobre sociedade aberta e liberdade de expressão. Actividade conjunta OI e PA.

Um outro exemplo de pressão que podemos ainda apresentar aqui é a série de manifestações realizadas por essas organizações em bloco contra os vícios e as irregularidades no processo de institucionalização das autarquias locais. A primeira dessas manifestações foi realizada a 18 de Abril de 2019. A segunda, sendo uma manifestação espontânea, foi realizada no dia 13 de Agosto do mesmo ano. A terceira ocorreu no dia 23 de Janeiro de 2020. Todas essas manifestações ocorreram defronte da Assembleia Nacional. Esta última culminou com a detenção de mais de 50 activistas, dentre os quais estavam José Gomes Hata, Scot Kambolo, Fernando Sacuela Gomes, João dos Santos “Mwanangola”, Hitler Samussuku e Luaty Beirão. Foram ainda detidos dois jornalistas da Agência Lusa – postos em liberdade horas depois da detenção.

Movimento Jovens pelas Autarquias e os novos desafios

O debate político sobre as autarquias locais em Angola começou por ser monopolizado pelos partidos políticos com assento no parlamento. As igrejas, as organizações de representações profissionais, e algumas OSC participam do debate simplesmente quando são consultadas pelo partido no poder, ou, quando participam voluntariamente, fazem-na de forma tímida e muitas vezes com discursos que não encontram aplausos na sociedade civil. O comprometimento do MJpA com o processo de autarcização, a forma como tem encarado, participado e conduzido o debate sobre as autarquias locais, mereceu a aceitação da Sociedade Civil.

Todavia, essa representatividade natural da Sociedade Civil feita pelo MJpA no processo de institucionalização das autarquias locais em Angola coloca-o perante a uma série de desafios. Um desses desafios prende-se com a necessidade de expansão do MJpA nos 164 municípios do país. Visto que, tal como já dissemos atrás, essas organizações são, na sua essência, comunitárias e os seus objectivos – concorrer nas eleições autárquicas nas suas respectivas circunscrições municipais – não devem, por imperativo legal, transcender os seus âmbitos. Ora, o MJpA trás consigo ventos de mudança e nenhuma mudança será efectivamente definitiva se não tiver os alicerces sólidos, robustez na base. As comunidades representam os alicerces, a base de qualquer sociedade política. Portanto, a expansão do MJpA em todos os municípios do país pode ser o primeiro e importante passo para uma mudança efectiva e definitiva da actual máquina que dirige o país há mais de quatro décadas.

Em volta disto várias questões ainda vão surgindo. Pretendem, as organizações que compõem o MJpA, simplesmente, concorrer nas eleições autárquicas nas suas respectivas circunscrições municipais ou, outrossim, cobiçam o poder central através dessa forma de participação em bloco? Se sim, como isto será feito? Poderá, o MJpA transformar-se num partido político, sendo certo que o contexto jurídico-constitucional actual em Angola reduz nos partidos e coligação de partidos políticos legalmente reconhecidos a corrida para o poder central? Pois bem, estas questões são respondidas por duas correntes antagónicas: a «corrente da transformação» e a «corrente da continuidade». Veremos de seguida o que cada uma delas propõe.

 Segundo a corrente da transformação se, eventualmente, o MJpA pretender concorrer para o poder central terá que, necessariamente, transformar-se em partido político através da união de todas as organizações que compõe o movimento. Só por esta via será possível concorrer em Eleições Gerais, tendo em conta o contexto jurídico-constitucional que por imposição dos artigos 109º e 111º da CRA reduzem nos partidos e coligação de partidos políticos a corrida para o poder central. Por outra, a Lei Orgânica sobre as Eleições Autárquicas proíbe igualmente a coligação de Grupos de Cidadãos Eleitores com os partidos políticos ou coligação de partidos políticos o que lhe condiciona ainda mais. Esta corrente busca o seu fundamento no actual contexto jurídico-constitucional, razão pela qual ela apresenta-se como uma corrente realista, conservadora e conformista.

Por sua vez, a corrente da continuidade, opondo-se à primeira, argumenta que na eventualidade de o MJpA vier a concorrer nas eleições para o poder central, através da união de todas as agremiações que o compõe, não precisará transformar-se num partido político, podendo continuar como movimento. Todavia, terá que começar uma luta cerrada e urgente no sentido de pressionar a reforma do sistema jurídico-constitucional actual. Esta luta deve ser devidamente planeada para que se consiga atingir os objectivos. Para o efeito, a corrente da continuidade sugere que o MJpA deve começar a construir alianças fortes e estáveis com as principais sensibilidades ou actores da Sociedade Civil angolana, para juntos, primeiro, conseguirem introduzir na opinião pública o debate sobre a revisão da constituição, segundo, exercerem pressão às entidades competentes para procederem esta revisão onde deverão introduzir um preceito que admita candidaturas independentes. Havendo candidaturas independentes na constituição qualquer cidadão que pretenda concorrer em eleições presidenciais não precisará atrelar-se num partido ou coligação de partidos políticos.

A corrente da continuidade pretende, desta forma, manter a tradição da luta activista fora dos palcos político partidário daí o slogan “MAIS CIDADANIA, menos militância”! que advoga o alargamento da esfera pública e a redução do espaço dos partidos políticos na arena política angolana. Segundo entendem, que os Partidos Políticos (PP) em Angola para além de surgirem em quantidade desnecessária que não determina em nada na eficiência da democracia, todos eles são indiferentes quanto ao espectro político o que faz dos seus discursos homogéneos. Além disso, durante muito tempo, nada têm feito para realizarem mudanças significativas no país. Em fim, esta corrente apresenta-se como idealista, reformista e revolucionária. Embora, na perspectiva do movimento, parece ser também conservadora na medida em que procura conservar a tradição de luta activista.

A nossa adesão a esta corrente tem duas razões de ser. A primeira tem que ver com a defesa de um princípio democrático básico: o “pluralismo de organização política” que em Angola resume-se nos PP, vedando, deste modo, a possibilidade de existência de outras formas de organização política diferente dos PP, como por exemplo, movimentos políticos que possam, de igual modo, concorrer com os PP nas eleições para o poder central. A segunda tem que ver com a defesa de um direito constitucional que é o “direito de participar na vida pública”, directamente, sem, no entanto, atrelar-se ou integrar-se a um PP. Acresce-se ainda a ideia de diversificar as formas de organização da Sociedade Civil.

Conclusão

Numa perspectiva de conquistas dos direitos e liberdades públicas é possível assimilar, sem grades esforços, os direitos e as liberdades públicas conseguidos pelo MJpA num período não mais de três anos contando desde a ascensão de João Lourenço à presidência da república. Ou seja, houve uma dilatação e ossificação da esfera pública angolana de tal modo que, hoje, a acção política fora dos palcos políticos partidários afigura-se a melhor opção de ser e estar na vida pública angolana por outorgar ao cidadão uma maior liberdade de exame das políticas públicas sem, entrementes, precisar observar nas formas rígidas e decrépita com as quais os partidos políticos têm debelado os seus militantes através dos dogmas partidários, por um lado, e por escudar os cidadãos da cega apologia segundo a qual a participação directa na vida pública só é possível através dos partidos políticos, por outro.

Apesar das suas peculiaridades as organizações que compõem o MJpA não deixam de ser organizações da sociedade civil, mas não lhes podem confundir com As Associações Cívicas pois têm uma natura diferente destas. De forma geral o objecto em que concorrem, o âmbito de actuação e a natureza das organizações que compõem o MJpA faz delas organizações pioneiras de um novo paradigma de participação política e cívica fora dos palcos políticos partidários, porquanto nunca antes houve, na esfera pública angolana, desde a aquisição da soberania, Organizações da Sociedade Civil que aspirassem o Poder Local Autárquico.

 

RELACIONADOS:
Cabo Delgado: Desafio à legitimidade do Estado ou novo monopólio da força?

António B. S. Júnior│A legitimidade dos Estados Africanos vem tomando centralidade nos questionamentos dos estudiosos que se interessam pela política africana desde o fim da opressão colonial. A este respeito, Leia mais

Entre os recursos naturais, a guerra e a COVID-19 em Cabo Delgado

António Bai Sitoe Júnior │Depois da descoberta dos recursos naturais na província de Cabo Delgado, vários fenómenos conjugaram para a transformação da paisagem política, social e económica da província, principalmente Leia mais

O Movimento Jovens pelas Autarquias e o novo paradigma de participação (1/2)

João Manuel dos Santos│Movimento Jovens pelas Autarquias (MJpA) designa a aglutinação de movimentos sociais juvenis que ocorrem em vários cantos do território nacional com a ascensão de João Lourenço à Leia mais