O regime jurídico da liberdade condicional à luz dos códigos penal e do processo penal

O regime jurídico da liberdade condicional à luz dos códigos penal e do processo penal

Manuel Ngangula* ǁ O art. 29.º da Constituição da República de Angola (CRA) consagra o princípio fundamental do aceso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, que se materializa pelo acesso aos tribunais, para a defesa dos interesses legalmente protegidos dos cidadãos, bem como o acesso à informação, à consulta jurídica e ao patrocínio judiciário que devem se caracterizar pela celeridade nos procedimentos judiciais para a garantia da referida tutela efectiva dos órgãos jurisdicional. É nessa esteira, a par dos direitos que assistem particularmente aos detidos e presos, ou seja, aos princípios que norteiam a acção penal do Estado (art. 64.º, 65.º, 66.º, 67.º e 68.º, da CRA), que nos propusemos a debruçar-nos sobre o benefício da liberdade condicional que qualquer cidadão privado da sua liberdade pode ter acesso, observados os requisitos que a lei define para a sua concessão. Como qualquer instituto jurídico, a liberdade condicional tem o seu percurso histórico, marcado sobretudo pela construção da sua natureza jurídica, tendo sido desenvolvidas diversas teses a respeito. Uma das ideias mais veiculadas é de que a liberdade condicional tem natureza de incidente de execução da pena de prisão, mas é, em termos práticos, parte da tramitação do processo e da competência para a sua concessão que surgem os principais problemas hodiernos do instituto em referência. Procuramos nos debruçar sobre o dever ser da lei e do direito, em confronto com a prática jurídica do funcionamento das instituições judiciárias que participam no processo da efectivação do instituto. Através da análise da lei, procuramos trazer à luz os melhores caminhos para a compreensão do referido instituto e a sua materialização para quem dela se quiser beneficiar.

A concessão da liberdade condicional é um acto judicial porque a decisão é da competência do tribunal, a quem coube a aplicação da pena privativa da liberdade concretamente limitada no tempo, ou seja, ao Tribunal de execução territorialmente competente. Para que o Tribunal tome a decisão de concessão da liberdade condicional concorrem outros órgãos, nomeadamente o Ministério Público e os serviços prisionais, cujas competências são bem definidas à luz do novo Código de Processo Penal. O Código Penal de 1886, prescrevia no seu artigo 120º (liberdade condicional), “Que os condenados a penas privativas de liberdade de duração superior a seis meses poderão ser postos em liberdade condicional pelo tempo que restar para o cumprimento da pena, quando tiverem cumprido metade desta e mostrarem capacidade e vontade de se adaptar à vida honesta”. No seu art. 121.º, são fixadas as obrigações que incumbem aos libertados condicionalmente. Esta liberdade condicional podia sempre ser revogada por decisão judicial, nos termos do art. 122.º do diploma citado. O art. 59.º do novo Código Penal veio definir os pressupostos formais e materiais ou substantivos para a concessão da liberdade condicional, sendo mais abrangente do que a norma do art. 120.º do Código Penal oitocentista. Exige, para que qualquer condenado possa beneficiar da liberdade condicional, desde logo, o consentimento deste; o cumprimento de metade da pena, e, no mínimo, de seis meses; for fundadamente de esperar (…), a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduza a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer novos crimes e a liberdade se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, entre outros requisitos. É aplicável ao instituo da liberdade condicional, o regime do art. 52.º e alíneas a), b) e c) do art. 53.º do Código Penal que dizem respeito à suspensão da execução da pena.

Cabe ao Código Penal, enquanto lei substantiva fixar os pressupostos para a concessão da liberdade condicional. No art. 63º, faz-se alusão aos casos de inadmissibilidade da liberdade condicional, designadamente, nos casos de condenação de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, homicídio qualificados, crimes sexuais contra menores de 14 anos, atentado à vida do presidente da República (…), Alta traição, Rebelião armada, Sabotagem e Espionagem. Pode ser revogada e extinta, a liberdade condicional, nos casos em que se verificarem os factos previstos nos artigos 54.º, n.º 1 e 55.º do Código Penal, por força do art. 62.º, n.º 1 do mesmo diploma, o que determina a execução da pena de prisão ainda não cumprida.

Da tramitação do processo de concessão da liberdade condicional

Antes da entrada do novo Código de Processo Penal e das demais legislações que que lhe precederam, o regime de tramitação da liberdade condicional era regulado pelo Decreto-lei n.º 26.443, de 28 de Maio de 1936, aplicável ao Ultramar, que institui a Reforma Penitenciária. Neste diploma definia-se que era da competência do Ministro da Justiça, a concessão da liberdade condicional, depois pelo Decreto N.º 34.553, de 30 de Abril de 1945 (Sobre Organização e competência dos tribunais de execução das penas), diploma que no seu art. 3.º (Competência do tribunal de Execução), retoma o art. 629.º do antigo Código de Processo Penal, no seu parágrafo 6.º atribui competência aquele tribunal para conceder liberdade condicional e decidir a sua prorrogação ou revogação. No artigo 22.º, refere que o processo próprio para o pedido de concessão da liberdade condicional é o gracioso, sendo a promoção da iniciativa do processo atribuída ao Director do Estabelecimento Prisional, que apresenta uma proposta fundamentada do pedido a favor do recluso. Os tribunais de execução foram extintos pelos art. 43.º e 44.º da Lei n.º 20/88, de 31 de dezembro, que atribuíram essa competência aos Tribunais Populares Provinciais com competência genérica.

Em termos adjectivos no que a tramitação do processo de concessão da liberdade condicional diz respeito, atento ao que ficou dito atrás, desde a evolução legislativa, hoje, seguindo a matriz do Decreto N.º 34.553, de 30 de Abril de 1945 (Sobre Organização e competência dos tribunais de execução das penas). É o art. 551.º (Tribunal de execução) do Código Penal que devemos ter em linha de conta, em matéria de execução de penas, pois prescreve que “a execução de penas e das medidas de segurança é promovida e assegurada nos próprios autos no Tribunal competente para a execução”, com as excepções previstas nos nº 2 e 3 do referido artigo. Significa isto que o Tribunal de execução da pena é o Tribunal competente para conhecer o pedido para concessão da liberdade condicional, tais competências são reforçadas no disposto no art. 552.º do Código do Processo Penal.

O Ministério Público tem competência para requerer a liberdade condicional, a favor do cidadão condenado, nos casos em que for admissível, depois de calcular o tempo de cumprimento da pena, nos termos dos art. 59.º e 60.º do Código Penal, informar a entidade que intervém na execução da pena – os serviços prisionais – que o condenado a cumprir pena de prisão deve ser colocado em liberdade condicional, tal faculdade também é conferida ao próprio arguido condenado, nos termos do art. 558.º, n.º 4 do Código do Processo Penal. Quer seja o Ministério Público ou o arguido condenado, ao promoverem o pedido de liberdade condicional junto dos serviços prisionais competentes, a decisão sobre a concessão é sempre do tribunal de execução, ou seja, daquele que aplicou a pena de prisão ao condenado, compreensão que se alcança do disposto nos art. 551.º, 552.º e 554.º do Código do Processo Penal. A decisão sobre a concessão da liberdade condicional deve ser proferida nos termos do art. 565.º do Código do processo Penal, cumpridos os requisitos formais exigidos e deve ser devidamente fundamentada.

Com efeito, não constitui regra ser o pedido de concessão da liberdade condicional promovido directamente pelo arguido condenado, bastando o seu consentimento para o efeito, no início da formação do processo ou antes da decisão. Só nos termos do art. 558.º, n.º 4, é que o arguido condenado, excepcionalmente, promove directamente o pedido de liberdade condicional junto da entidade responsável dos serviços prisionais. A prática hodierna também demonstra que, nem o Juiz que julgou a causa, aplicando a pena de prisão, toma a decisão sobre o pedido de liberdade condicional, tal poder é diferido para o presidente do Tribunal da Comarca competente, contrariamente ao que a lei dispõe.

A excessiva burocracia que se assiste nos serviços prisionais não permite que sejam cumpridos escrupulosamente os prazos fixados nos art. 59.º, n.º 2 do Código Penal e 564.º, n.º 1 do Código do Processo Penal, porque pouco são os casos em que a iniciativa para promover a liberdade condicional é da entidade que participa da execução da pena. O que é comum acontecer, é o arguido condenado submeter o seu pedido junto dos serviços prisionais e este último remeter ao Tribunal após decorridos todos os prazos mínimos exigidos, propiciando igualmente a informalidade nos pedidos, colocando em causa, princípios e liberdades fundamentais dos cidadãos que recorrem ao expediente processual para beneficiar em tempo oportuno de um benefício que a lei lhes confere. Pelo que, sendo os Arguidos condenados os mais interessados na concessão da liberdade condicional, sendo certo que a execução das penas se processa nos próprios autos (art. 551.º, 1 do Código do Processo Penal), os interessados deviam recorrer directamente ao Tribunal competente para a execução da pena, e seria o tribunal a requerer dos Serviços Prisionais, os relatórios e informações a que se referem o art. 564.º, n.º 1 do Código do Processo Penal, só assim se poderá dar respaldo ao pressuposto do consentimento previsto art. 59.º, n.º 1 do Código Penal.

Na antiga metrópole, Portugal, onde a legislação serviu de base à nossa, cabe ao Tribunal de Execução de Penas, a promoção da iniciativa do processo de concessão de liberdade condicional, a quem compete requerer aos serviços prisionais e demais entidades intervenientes as informações necessárias, quando se mostre cumpridos os prazos para a materialização, nos termos do art. 484.º, n.º 2 do Código do Processo Penal Português.

Tal entendimento, longe de implicar a necessidade urgente da alteração da lei, poderia muito bem resultar de uma melhor articulação entre os órgãos intervenientes na execução da pena, de modo que o processo de concessão da liberdade condicional se ajuste melhor aos princípios da tutela jurisdicional efectiva e do processo justo e conforme, constitucionalmente consagrados.

*Jurista.

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