Os discursos políticos e a falsa compreensão da democracia e da cidadania em Angola

Os discursos políticos e a falsa compreensão da democracia e da cidadania em Angola

FAQs

Muata Sebastião | Apesar de todas as lutas já feitas, o facto é que o povo angolano não conta com uma educação política que o possibilita compreender e exercer sua cidadania. Assim a participação do demos transformou-se num formalismo inconsequente na medida em que, a cidadania é, na maioria dos casos confundida com militância partidária. Tal falta de educação política nega o sentido da cidadania.

Pelo que, a educação negada, aos cidadãos, transformou-os em autênticos desconhecedores dos direitos fundamentais. E como consequência, vemos os cidadãos mergulhados num ambiente sem liberdade, igualdade, respeito e, sobretudo sem nenhum reconhecimento humanizante e humanizador.

Em meio a muitas lutas temos vindo a acompanhar, em Angola um amplo crescimento de movimentos em busca de uma sociedade democrática e que possibilite o exercício pleno da cidadania. Há tempos que Angola vive constantes assaltos aos direitos democráticos o que representa para o nosso povo um enorme “atraso civilizacional” fruto de políticas sem nenhuma expressão real à vida dos angolanos. Os angolanos foram enganados e marginalizados pelos que trouxeram, desde à independência aos nossos dias o famoso slogan, “o mais importante é resolver os problemas do povo” e tantos outros que foram surgindo durante o tempo. Na mesma tónica, para ludibriar e enganar as pessoas, em 2012 os ditos “patriotas” trouxeram o slogan, “ O MPLA é o povo e o povo é MPLA”. Estas expressões tornaram-se para os “resolvedores de problemas” o arké das suas acções políticas dentro do que poderíamos chamar por discurso politicamente incorrecto adoptado para tornar mais sólidas suas acções de manipulação e marginalização dos angolanos, como irá ainda ocorrer nos próximos cinco (5) anos de governação em que a política resumir-se-á no seguinte: “Corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”.

Felizmente, nas eleições de 2017 percebemos o nível de maturidade alcançado pelos angolanos, o que nos faz crer de que os apelos constante dos grupos de pressão, vulgos movimentos sociais organizados e não só que desempenharam um verdadeiro papel de agentes cívicos funcionou. Com isso, não temos dúvidas de que esta tendência continuará sendo crescente a medida em que as políticas continuarem a ser segregacionistas.

Estes grupos que aos poucos têm superado o medo, procuram uma forma cívica, e através das suas acções, encontrar espaços de actuação de modos a despertar o cidadão, mostrando-lhe, o valor da luta democrática o que para os opositores da democracia parece ser uma afronta ao seu regime.

Este tipo de luta justifica-se também por representar uma forma real de se opor à toda política irreflexa na vida dos cidadãos, resultado de ideias produzidas nos grandes centros de informações (medias) que têm contribuído na difusão social dos produtos de uma cultura de massa que se reflecte na sociedade desinformada a qual é obrigada a criar uma falsa ideia de estado e nação, que na linguagem do fenomenalista Hans-Georg  Gadamer chamaríamos de “falsa compreensão”. Esta cultura propagada traz como consequência, a destruição da solidariedade, por colocar o valor no dinheiro transformando-o no centro das relações humanas, critérios e métodos próprios do mercado. Daí que assistimos hoje pessoas que se recusam a exercer sua cidadania, não só por desconhecerem seus direitos e deveres, mas por terem colocado como prioritário o que lhes traz prestígio e fama.

Daí que, corroboramos com Manfredo Araújo quando afirma que “vivemos o tempo do triunfo da mercadoria absoluta, o consumismo se faz modelo de vida e as relações humanas se degradaram em meras relações de troca de objectos consumíveis, de tal modo que a única identidade que sobra para o ser humano é a de ser consumidor, um ser unicamente voltado para seus interesses privados e indiferente ao bem público”. Esta é a nossa realidade. Não é por acaso que nos deparamos com o crescente número de pessoas que bajulam em prol de um prestígio desmerecido. Estas têm contribuído para a cultura do imediato e do medo e não têm como prioridade os interesses dos fracos e marginalizados. Por este facto, Angola produziu até hoje, mais interesses pessoais a base da marginalidade económica possibilitando que um grupo de angolanos detivessem o poder e o controlo da economia nacional. A preocupação para com os interesses pessoais fez com que assistíssemos a acumulação de capitais e domiciliados em instituições bancárias estrangeiras, enquanto o pacato cidadão, pobre e desinformado vive em condições catastróficas e herdando compulsivamente a extrema pobreza resultado do efeito corrupção e má governação.

[Pt|rmc]
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Existe uma grande disparidade cognitiva entre os cidadãos, um problema que advém da falta de instrução e do consequente desconhecimento dos valores da democracia e da cidadania. E como resultado, assistimos continuamente a desorientação do país, um problema que se pode notar em todos os níveis. E aqui, não podemos nos enganar com o populismo do actual presidente da república, não é isso que muda o país muito menos as condições dos cidadãos, mas acreditamos que pode vir a ser basta que tenhamos políticas públicas reais. Ou seja, os impactos sociais ainda não se fazem sentir na mudança das condições básicas das populações. É preciso termos muita atenção com a filosofia das massas, um assunto que poderei abordar na próxima publicação. Mas o que interessa é não esquecermos de que, somos herdeiros de um governo que se assumia paternalista e demonstrou ser irresponsável, na medida em que se preocupava com os interesses da elite ao invés de promover valores que garantam a cidadania e os seus reais valores.

Nos últimos tempos, o país caiu num círculo vicioso em que as aspirações pela democracia foram sempre anuladas por aqueles que se apoderaram do país.

Partindo da ideia de Matin Luther King de que “quem aceita o mal sem protestar, coopera com ele”, nossa reflexão representa exactamente isso, ou seja é um repúdio a falsa democracia reinante no país que não só maculou o estado, como também colocou em crise o estado democrático e de direito. Em outros termos, poderíamos dizer que todos os constrangimentos mencionados resultam da ausência de um Estado soberano propriamente dito. Nesta perspectiva parece-nos inútil falar de democracia, se o Estado não for de soberania popular em todos os níveis. A democracia não é uma invenção ideológica a favor de, mas a favor dos (…). Tanto é que, se torna importante o papel da sociedade e dos partidos interessados, mas sobretudo os primeiros em intensificarem suas acções de educação cívica e patriótica de formas a tornar claro os verdadeiros ideais da democracia e da cidadania. É preciso uma luta séria para não confundirmos o que é a democracia muito menos maculá-la. É nesta perspectiva que trago para a nossa reflexão o pensamento de Thomas Janoski, citado por Aloísio Krohling. O autor em questão, fala de quatro esferas para a compreensão do Estado e do exercício da cidadania. Trata-se de uma teoria que surge como resposta às divergências entre o público e o privado. Nas linhas do mestre precisamos saber interpretar:

  • A esfera estatal compreende o Poder Executivo, o Legislativo e o Judiciário, todas as divisões e repetições dos espelhos do Estado.
  • A esfera privada é formada pela vida do indivíduo, sua família, propriedade particular, rede de amizades e relações de direito à privacidade.
  • A esfera mercadológica é constituída de empresas de todo tipo: bancos, comércio, federação de empregadores.
  • A esfera pública é o espaço público da sociedade civil com todas as associações, igrejas, sindicatos de trabalhadores, ONGs, terceiro sector, escolas, hospitais e instituições sociais e assistenciais, bem como movimentos sociais e todas as instâncias comunitárias (…).

Na verdade, o que o autor quer dizer com esta sua forma de estratificar a actuação e o papel da sociedade no processo de construção da democracia tem a ver com a responsabilidade que cada uma das partes precisa assumir. Tanto é que para Aloísio Krohlin “a nova esfera social pública é o espaço público dos direitos dos cidadãos de se organizarem e reivindicarem, serem ouvidos e atendidos com efectividade. A nova esfera da organização cidadã é não estatal e não mercantil, pois ela escapa da dominação do Estado e da lógica do mercado”.

Esta ideia abre-nos uma nova porta de entrada com o objectivo de compreendermos o papel da sociedade civil na construção de um país mais democrático e que seja a voz dos que não têm voz. Um país diferente deste, (construído) pelos bajuladores que, aproveitando dos espaços que têm, tiram voz a quem tem pouca voz e com ela a possibilidade de discutir e decidir sobre a sua vida como cidadão. A sociedade civil precisa ser um elo de ligação entre os dominadores e os dominados, fazendo crer que a conquista pela democracia é sim possível e uma vez conquistada facilmente se irá construir uma cultura política realmente democrática. É preciso construir espaços públicos reais, porque, “um espaço público democrático é aquele que garante que os fluxos democratizantes gerados na sociedade civil se tornem fontes de democratização do poder”.

É por uma Angola liberta que eu escrevo, por um povo cada vez mais marginalizado. Daí que, considero esta reflexão provocativa na medida em que muita gente ignora o que realmente acontece com os humildes angolanos e fruto desta provocação lanço também um desafio a todos aqueles, começando por mim, que temos centrado nossas lutas em busca dos ideais democráticos: combater os problemas que perigam a democracia, exercer a cidadania em nome da democracia, levar a cabo acções que despertam mentes.

Não tenho dúvidas de que é possível uma Angola e uma cidadania vivida de forma intensa, mas precisamos que todos se sintam partes da luta.

Bibliografia

KROHLIING, Aloísio. Direitos Humanos Fundamentais: diálogo intercultural e democracia. São Paulo: paulus,2009.

OLIVEIRA, Manfredo Araújo de. Ética , direito e democracia. São Paulo: Paulus, 2010.

RANCIERE, Jacques. O ódio à democracia. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2014.

 

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