“Pensar sem corrimão”: Fórmula para te (des)banalizares

“Pensar sem corrimão”: Fórmula para te (des)banalizares

Xénia de Carvalho***ǀ Corria o ano de 2012 na Pérola do Índico, as notícias se cruzavam entre cafés e chapas, no burburinho ameno da Cidade das Acácias. Se ouvia Vienna Philharmonic – Barber: Adagio for Strings, Op.11 (Summer Night Concert 2019) – YouTube (clica aí, mano, e vai em crescendo, acompanhando seu compasso). As pessoas andavam em ritmo suave e as novidades nos anunciavam que a África Subsaariana ia crescer, leve-leve, de forma pouco acentuada, 0.3%, crescimento moderado, mas anunciado pelo Banco Mundial como positivo. Havia esperança. Mas meu mais-velho não se acreditou nisso do Mundial definir a positividade, me pediu que lhe trouxesse uma forma de questionar essa realidade, que seu cansaço lhe chamava para a reflexão sem corrimão. Eu estava em casa, tinha tempo para pensar. Me deparei com a banalidade do mal de Hannah Arendt (1906-1975), essa descrição do homem funcionário público sem imaginação, homem exemplar que em tudo obedeceu ao seu regime, concebendo uma solução que eliminasse de forma eficaz e eficiente os seres que seu regime considerava desadequados ao bom funcionamento em sociedade. Essa história lhe dei em 2012. Se a queres, podes ir lá, na cloud colectiva, onde se guardam as memórias na modernidade (sim, mano, estou deixando… no final desse texto encontras o endereço da cloud*). 

Meu mais-velho já se foi, nos antecipou, mas te deixou missionado para me demandares esse questionamento da realidade de quando em vez, sendo a vez quando a Pérola do Índico está meio abandonada na esperança, com um regime preso a um corrimão, estabelecido pelo Mundial e instituições amancebadas.

Pela Pérola encravada, dez anos depois regresso a Hannah Arendt. Te relembro de seu percurso: jornalista e professora; escritora de filosofia; presa em duas condições, a de indesejada pelo regime (i.e. Alemanha, Gestapo, polícia secreta do Estado) e a de fugitiva (i.e. França, campo de concentração nazi). Terminou na América, porque era judia. A condição que assumiu “porque se você é atacado como judeu você tem que responder como judeu” e “não como ser humano”. Uma condição que não agradava ao regime alemão da época (i.e. Terceiro Reich, 1933-1945, ancorado em Adolfo Hitler e no nacional-socialismo), que intentava construir outra derivação d’ Homem Novo.

Em 2012 narrei sua história. REPITO, parcialmente essa narrativa (re)passada: em 1961, Hannah é enviada a Israel para documentar esse homem novo. The New Yorker, uma revista norte-americana (os gringos sempre nos deram esse espaço, na América estamos todos fugitivos de outros lados), lhe pediu que fizesse a reportagem sobre o julgamento de Adolfo Eichmann (1906-1962), alemão, chefe da logística e gestor do sistema de deportação de seres-judeus para guetos e campos de concentração para sua eliminação definitiva e sem rasto. Israel o condena a enforcamento, excepcionando a sua lei que não previa a pena de morte. Eichmann é enforcado em Jerusalém por crimes contra a Humanidade, contra o povo judeu e crimes de guerra levados a cabo no demorar da II Guerra Mundial (1939-1945). Arendt retrata o homem novo como um ser banal, que é irrepreensível na sua arte de cumprir ordens dadas por um regime político que mandou eliminar quem classificou como incómodo. Matar com propósito é um acto direcionado, banal numa época, como a descreveu Arendt na sua reportagem, em que “sob condições de terror a maioria das pessoas obedece, mas algumas não”.

E assim deixei essa história para o mais-velho em 2012. Hoje lhe dou continuidade. Sinto essa necessidade. Fica também em registo para ti, mano kota, que estás em nossa memória, nesse acto de representação em que te prematuraste. Nessa continuidade sigo, na esperança de que os anos me tenham deixado ver para-além da regular quotidianidade – embora já não em casa, ainda penso. Bom… casa é onde está o pensamento. Deixa lá continuar. Vou disso. Segue lá comigo.

Em 1972, em Hannah Arendt sobre Hannah Arendt**, a jornalista-filósofa dialoga com professores de economia, ciência política, filosofia, serviço social, arquitectura, e outros que mais, sobre a sua obra. Porque esse é o centro do seu modo de ser. “Não quero que ninguém aceite o que eu penso”. Ela declama, intensificando a frase dizendo que “realmente não quero doutrinar”, acentua sublinhando que “eu desejo mesmo compartilhar”. E partilha a sua metáfora nunca publicada, que guardou para si própria, a enunciando: “Eu a chamo de pensar sem corrimão”.

Sem corrimão? Estás perguntando como? Escuta lá então.

“Ou seja, à medida que você sobe e desce os degraus, sempre pode segurar no corrimão para não cair. Mas nós perdemos esse corrimão. É assim que digo a mim mesma. E é isso, de facto, que tento fazer”.

Como faz? Epa, começa pela distinção. “Sempre que eu começo alguma coisa – não gosto de saber muito bem o que estou fazendo – eu digo: ‘A e B não são a mesma coisa’”. Mas Hannah sabe “que todo o pensar, o modo como me entreguei a ele um pouco além da medida, uma extravagância, tem a marca distintiva de ser uma tentativa”.

Como se aplica tal método em sede de modernidade? Um dos que dialoga com Arendt lhe pergunta se ela lhe daria instrução (ou instruções?), ao que ela responde que “Não. Eu não instruiria você, consideraria isso uma presunção minha. Acho que você deveria ser instruído quando se sentasse com seus pares em volta da mesa e trocasse opiniões com eles. Daí viria a instrução: não pessoalmente para você, mas como o grupo agiria”.

Esse par’eamento nos traz em jeito serpenteado ao homem-eficiente-eficaz-da-logística-enforcado. Hannah, dialogando com um outro, em referência ao texto da reportagem em Jerusalém, lhe responde que ele “afirma que eu disse nele que há um Eichmann em cada um de nós. Ah, não! Não há nenhum Eichmann em você ou nem em mim! O que não significa que não haja um grande número de Eichmanns. Mas eles são bastante diferentes. Sempre detestei essa ideia de um ‘Eichmann em cada um de nós’. Isso simplesmente não é verdade. Seria tão pouco verdadeiro quanto o contrário, que não há um Eichmann em ninguém”.

Para des’Eichmann’ar há que dialogar e esse diálogo começa no pensar, acto esse que se faz em solidão.   

“pensar e agir não são a mesma coisa, e isso a tal ponto que, se quero pensar, preciso me retirar do mundo”.

A acção se faz em conjunto, mas pensar se faz mesmo em solidão, sem corrimão ou “regras de orientação”.

Cada ser pensa em permanência, dando forma ao pensamento através da palavra que conjuga para descrever o que lhe aconteceu. A palavra, como a descreve Hannah, enquanto vocabulário, é herdada, depois é preciso examiná-la, contextualizá-la historicamente, ir além do “valor comunicativo da palavra. Eu olho para a qualidade desveladora dela”.

Anos mais tarde, na sua última obra, A Vida do Espírito**, que Hannah deixou incompleta, regressa de novo à banalidade-do-mal-desse-funcionário-estatal-homem-máquina, pelo que representou em sua obra e sua compreensão do mundo e dos seres. Ela nos avisa nos diálogos com os seus pares, em 72, “há pessoas principalmente interessadas em fazer algo. Eu não estou. Posso muito bem viver sem fazer nada. Mas não posso viver sem tentar ao menos compreender aquilo que acontece”.

N’A Vida do Espírito a marcante inexistência de uma incompreensão do ser-sem-imaginação, que praticou essa banalidade do mal, a leva a discorrer sobre essa humana condicionalidade. “Foi essa ausência de pensamento – uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parar e pensar – que despertou o meu interesse”. Eichmann não pensava, era ser ausentado de si próprio, em sintonia com o poder.

No fim da vida, Hannah regressou ao questionamento inicial, porque a isso nos condena a condição de humanidade – o eterno (re)torno. “Será possível que o problema do bem e do mal, o problema de nossa faculdade para distinguir o que é certo do que é errado, esteja conectado com a nossa faculdade de pensar?”. Arendt relembra que ao ouvir o funcionário-modelo-do-regime, a “ausência de pensamento com que me defrontei não provinha nem do esquecimento de boas maneiras e bons hábitos, nem da estupidez, no sentido de inabilidade para compreender”. Nos guia, informando que “A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça ou chame a atenção (…) estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ‘condicione’ contra ele?”. A filósofa-jornalista (inverteu os termos no final da vida), fecha esse se derramar em pensamento para chegar a um entendimento, que a “a própria palavra ‘consciência’, em todo o caso, aponta nesta direção, uma vez que significa ‘saber comigo e por mim mesmo’”.

Em solidão, sem corrimão, no acto do pensar se dá essa condição da (des)banalização. Te deixo a fórmula, meu irmão, conjuga na tua verbo’sidade em forma de derrapagem vertiginosa essa travagem, te (des)banaliza. Hoje. No imediatismo desse início do teu pensar.  Derrapa. Sem corrimão.

*Memórias na cloud colectiva: Da Banalidade do Mal: Hannah Arendt e o julgamento de Eichmann em Jerusalém

** Livros de Hannah Arendt (re)utilizados: Pensar sem corrimão: Compreender (1953-1975) – Hannah Arendt – Google Livros e https://abdet.com.br/site/wp-content/uploads/2014/11/A-vida-do-espírito.pdf

***Antropóloga, PhD. Investigadora associada no ​Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA)/Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)

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