Um atentado à identidade cultural

Um atentado à identidade cultural

TPA 2
[F/rmc]
 Por Nvunda Tonet || A identidade cultural consiste no conjunto de relações sociais e simbólicos historicamente compartidos que estabelecem a comunhão de determinados valores culturais e sociais. Constitui-se no imperativo normativo em relação a conjugação participativa da sociedade na consagração de valores, atitudes, crenças e condutas morais, observando-se na sociedade uma identidade em manifestações que podem envolver um amplo número de situações que vão desde os comportamentos colectivos aos devaneios extemporâneos. Durante muito tempo, a ideia de uma identidade cultural foi devidamente preservada na sociedade angolana, principalmente no período pré-paz

Consideramos o povo angolano como africano e com raízes antropológicas marcadamente Bantu. Neste contexto, devemos antes de mais compreender que qualquer análise, enquadramento ou avaliação dos comportamentos, crenças e valores morais associados ao angolano deve ser entendido nessa perspectiva. De forma sequencial, apresentamos parte da análise profícua sobre a telenovela de produção nacional emitida pela Televisão Pública de Angola:

1.Linguagem

Os actores envolvidos nas películas até aqui apresentadas estão equidistantes da realidade linguística e fonética dos angolanos. Os angolanos provenientes do litoral, do norte ou do sul do país falam e se expressam de modo próprio e com as peculiaridades das suas regiões, tendo em perspectiva os hábitos, costumes e crenças locais. Neste aspecto, é importante contar com a colaboração de estudiosos da língua e com as pessoas naturais das referidas zonas para melhor caracterização do contexto encenado. Por exemplo, nota-se ao longo das conversas entre os intervenientes uma tonalidade da voz muito fina e meiga; quando se sabe que de modo geral os angolanos falam alto e com muitos neologismos. A língua não é apenas um veículo de transmissão de informação, mas sobretudo, instrumento de poder.  Em muitos momentos, tal como argumenta José Carvalho “é possível observar o domínio de um grupo social sobre outros por meio da força bruta e imposição de sua língua”. Outrossim, algumas pessoas pensam que falar bem o português é afinar a voz em detrimento da gramática.

2.Cenários

A maior parte das casas, vilas, ruas e espaços geográficos apresentados estão bastante requintados para uma sociedade e cidade em vias de desenvolvimento com desigualdades sociais equidistantes não se pode passar a imagem de luxúria, total bem-estar e sofisticação. A realidade é bem diferente. Temos casas de pau-a-pique em pleno Bairro Operário, chapas na Maianga, famílias inteiras que vivem em anexo, recém-casados que têm de arrendar anexo no quintal de um vizinho devido a dificuldade habitacional que o país atravessa. Outro aspecto prende-se com a mesa de refeições. Colocar sumo de laranja, uva, bolo de arroz e iguarias no pequeno-almoço (vulgo matabicho) demonstra incultura, pois, de modo geral, os angolanos comem pão com manteiga “Margarida” chá e quando sobra algum tostão conseguem frigir um ovo ou salchichas. A fala dos actores e o som ambiente é captado por um único microfone, que registra até o barulho dos talheres na mesa. Nos bairros, ruelas e musseques de Luanda, as normas de convivência e de conduta das pessoas estão intimamente ligadas à tradição, religião, consenso e respeito mútuo.

3.Temas

TPA 2 N
[F/rmc]
A homossexualidade, o consumo de substâncias psicoactivas e a vingança parecessem ser as linhas orientadoras do enredo. O Beijo Homossexual que escandalizou a sociedade civil e permitiu amplos comentários e desabafos nas redes sociais demonstrou claramente a sensibilidade da matéria entre nós. Quando se vive em comunidade devemos estar preparados para correr riscos. Os responsáveis da empresa produtora da telenovela devem estar cientes dessa realidade. Em relação aos temas escolhidos deveria existir maior aproximação com aquilo que as pessoas vivem no dia-a-dia, no seio familiar, nas aldeias e vilas. Por exemplo: numa das cenas, um menino tem uma pequena lesão e decide ligar para a ambulância. E em minutos a ambulância aparece. Mesmo que este menino estivesse no Miramar, sabe-se que em Angola as ambulâncias do Serviço Nacional de Saúde não funcionam. Temos de ser sinceros. É pertinente abordar temas com maior interesse social e que são prioridade para reflexão temática como a intolerância política, a partidarização do aparelho de Estado, o défice na educação pública, a decadência do sistema nacional de saúde pública, a corrupção, as doenças respiratórias, o saneamento básico, a iliteracia ou a taxa de natalidade.

Síntese

Como réplica aos comentários, a empresa produtora da telenovela, emitiu em comunicado de imprensa um pedido de desculpas pela cena do “beijo gay” que no entender dos produtores ofendeu “algumas sensibilidades”. O termo “algumas sensibilidades” é hipócrita, pois minimiza a dimensão do problema, tentando restringir o incómodo a um “grupinho de pessoas” nada simpáticas. Em outas palavras, querem insinuar que um nicho de insatisfeitos não gostou, pessoalizando o problema. Não se trata de pessoas nem de “algumas sensibilidades” como reza o documento. Trata-se, pois, da integridade moral de um povo, da ética pública e do bom senso.

É importante lembrar que o atentado à identidade cultural não se circunscreve apenas a Telenovela, mas aos conteúdos dos programas do canal 2 da Televisão Pública de Angola.  [F/F8].

RELACIONADOS:
O fim da televisão de massas

[Pt/rmc]  Por Ignacio Ramonet || Todos os estudos realizados sobre as novas práticas de uso da televisão nos Estados Unidos e na Europa indicam uma mudança Leia mais

Uma voz feminina na pandemia: “Cidadã de segunda classe”

Xénia de Carvalho │A pandemia me devastou, mas não me quebrou não. Tum-tum tum-tum tum-tum tum-tum (entra o trompete). "Eight to the bar", há quem lhe chame. Usam-se oito notas. De Leia mais

CASAS: uma nota de compaixão

Está a circular uma lista onde consta o meu nome, cujo fim, seria a aquisição de moradia mediante “tráfico de influência” do CNJ. Nunca dialoguei com quem quer que seja Leia mais