Domingos da Cruz*│ “Este relato lembrar-nos-á, no futuro, que um dia 4+4 foi e é =65 porque o partido assim quer. E serão 8, quando o partido decidir!”
Angola é um daqueles países cuja memória é o futuro. A ideia de que a «catacumba» do passado não constitui novidade, em Angola, não se aplica. O passado é o presente e um futuro que surpreende. Neste país, também, o que foi ― o passado ― é imprevisível! Por contraditório que pareça, é também o eterno retorno.
Quando se vive numa sociedade, em que a história é o conjunto de «factos migalhas» seleccionados criteriosamente pelo partido, narrar o que ocorreu connosco é prestar um serviço ao país com vista a darem-se os passos embrionários, que visam garantir o direito à memória.
Ter controlo sobre o passado, e dele elaborar uma embalagem de fragmentos históricos (ou forjados), para dar forma a uma consciência histórica ficcionada, é uma forma de poder. Esta engenharia sócio-histórica poderá condicionar a forma de ser e estar no mundo, por parte de um povo. Quem controla a narrativa histórica determina, em parte, o futuro individual e colectivo dos povos. Molda o imaginário.
No relato, o autor informa sobre a motivação que presidiu a decisão de partilhar o que terá ocorrido intramuros durante a detenção: evitar que no futuro contenha factos que não aconteceram.
A sociedade angolana está marcada por inúmeros silenciamentos — silêncio sobre a primeira colonização do povo Bantu contra os povos Kung; silêncio sobre o 27 de Maio; silêncio sobre a Sexta-Feira Sangrenta, como também outros massacres; silêncio referente a personalidades chaves para Angola; silêncio sobre o papel da mulher na construção de Angola como a conhecemos. Entre muitos outros silêncios, está, igualmente, a nossa história sobre o sistema prisional.
Numa sociedade, na qual há tantos silêncios sepulcrais referentes à memória, e em que os recortes do passado que são levados à esfera pública, em vez de fazer luz, lança somente névoa, trevas e desesclarecimento ― por ser escolhido, criteriosamente, por métodos estranhos à ciência ― Magno Domingos tem razões suficientes para pânico e, consequentemente, escrever o que terá ouvido, visto e vivido nos corredores e celas do calabouço.
Estas páginas constituirão parte da Biblioteca Nacional das Sombras do Cárcere. Felizmente, à luz da biblioteconomia, já temos vindo a coleccionar trabalhos sobre a desumanidade que estas paredes carcerárias esconderam no Estado pós-colonial e no precedente.
Segundo Agualusa, «Já temos, pois, em Angola, uma biblioteca de cárcere, o que, infelizmente, diz muito sobre o amargo passado (e presente) do nosso país. A história de Angola é a própria história da crueldade humana. A soma de testemunhos sobre a vida nas prisões, desde a época colonial até aos nossos dias, parece-me importante para avaliar, a cada momento, os recuos e os avanços do processo político, no que diz respeito aos direitos humanos. É interessante comparar, por exemplo, a vida nas prisões coloniais e no pós-independência.» E continua dizendo que «o lado positivo é que todas essas publicações nos mostram a dificuldade, senão a impossibilidade, em silenciar o mal.» Trata-se de um aviso para todos os torturadores, todos os ditadores, todos aqueles que troçam da democracia e dos direitos humanos: «um dia vocês terão os vossos nomes expostos. Um dia terão de responder pelos crimes que cometeram. Um dia as vozes que vocês tentaram amordaçar hão-de se fazer ouvir.» (Rede Angola, 21.10.2016).
É exactamente isso que vimos nesse relato: fazer-se ouvir. Um fazer-se ouvir que ajudará no processo de construção da consciência histórica, e traduzirá os actos bárbaros e os seus autores em monstros da história nacional. Serão relegados à sarjeta da imoralidade. Mas qual seria o lugar dos defuntos éticos, se não as páginas tenebrosas da historiografia? Para isso, precisam estar registados, tal como este e outros relatos fizeram.
Finalmente, parece-me que nestas páginas não devemos buscar qualquer valor estético-literário. O seu valor está na dimensão comunicativa como afirmação da humanidade do autor, expressa na leveza das frases, no humor e na indiferença aparente, quando evoca acontecimentos dramáticos como a morte da sua irmã; a violação de mulheres nas celas por polícias, e o modus operandi das mulheres enquanto ratoeiras perfeitas dos serviços secretos ao dispor de uma elite embrutecida. Elite do retrocesso, em estado de natureza perfeita.
Estas páginas são pessoais. Mas são igualmente estilhaços factuais que expressam e lembram-nos que Angola é uma sociedade encapsulada nas sombras e penumbras em todas as suas dimensões. Este relato lembrar-nos-á, no futuro, que um dia 4+4 foi e é =65 porque o partido assim quer. E serão 8, quando o partido decidir!
*Prefácio do livro de Magno Domingos: «Meu querido caos ─ A razão, o activismo e a cadeia».