A PROPÓSITO DO ARTIGO 19 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

A PROPÓSITO DO ARTIGO 19 DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS

 

Ana Koluki“Todo o indivíduo tem direito à Liberdade de Opinião e de Expressão. Este direito implica a liberdade de manter as suas próprias opiniões sem interferência e de procurar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio de expressão independentemente das fronteiras.”

PAZ ou ‘O Virtual Silenciamento Real’

Paz é o nome de uma ‘blogueira’ negra, angolana baseada em Londres, que venho observando ‘online’ desde finais de 2006. Olhando para a ‘timeline’ dos maiores espaços nas actuais redes sociais, ao tempo o ‘blogger’, plataforma em que Paz iniciou a sua aventura de auto-expressão ‘online’, era o maior e ‘mais velho’ de todos, com 7 anos de existência. A ‘blogosfera’ era, então, ainda um espaço relativamente restrito, em que poucas mulheres se aventuravam como criadoras/editoras – especialmente entre as mulheres negras africanas. Paz chamou-me a atenção por ter sido a primeira ‘blogueira’ nesse grupo com que me deparei, mas não so’ por isso.

O seu ‘blog’, escrito em Português e Inglês, trazia uma série de características únicas e inovadoras, tanto em termos estéticos como temáticos, cobrindo um vasto leque de áreas de interesse formativo e informativo – das artes, letras e música, à política nacional e internacional, passando pela economia e a ciência, tendo sempre presente a preocupação com os Direitos Humanos, especialmente os das Mulheres, a Democracia, a Justiça Social e a Liberdade de Expressão. Por essas razões, o ‘blog’ atraiu desde o início uma considerável audiência um pouco por todos os continentes, com destaque para Angola, Brasil e Portugal – o que levou a que Paz fosse convidada a contribuir, como ‘guest blogger’, editora e articulista para outros espaços de relevo na ‘globosfera’ como o ‘Global Voices Online’, o ‘Africanpath’, ou o ‘Atlantic Community’.

Tal notoriedade, se cedo lhe valeu encómios e incentivos, tão cedo também lhe atraiu ‘bullying’ de todo o tipo – desde os insultos mais grosseiros às ameaças de morte, por entre o assédio e objectificação sexual e o ‘hacking’. E tal ‘bullying’, tendo-se embora revestido das mais diversas formas, tinha invariavelmente por origem a ‘lusosfera’ e por motivação os temas que Paz abordava no seu ‘blog’, alguns dos quais ainda hoje considerados tabu no ‘mundo lusófono’ e particularmente em Angola: e.g. sobre ‘Questões Identitárias’, incluindo as de ‘Raça/Racismo’, ‘Apropriação Cultural’, ‘Discriminação com base no Género’ ou ‘Interseccionalidade Raça/ Género’.

Paz viu-se assim, desde o início, envolvida em lutas contínuas para manter o seu ‘blog’ operativo e não deixar calar a sua voz – ou seja, pelo seu direito à liberdade de expressão e opinião, não deixando nunca, apesar de todas as provocações, de respeitar o de outros. Então, certamente não por acaso, a primeira vez que li com mais atenção o Art. 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) foi no ‘blog’ de Paz, como parte de uma ‘Denúncia Pública/Queixa Crime’ (DP/QC) que ela,  5 anos depois de ter criado o seu ‘blog’, moveu contra um ‘prestigiado jornalista sénior’ baseado em Luanda – nomeadamente por, entre Calúnias, Injúrias e Difamações: 1. Violações dos seus Direitos Humanos; 2. Violações dos Princípios de Ética e Normas Deontológicas Reguladoras da Actividade Jornalística Internacionalmente Consagrados; 3. Violações à Lei de Imprensa da República de Angola.

O que se seguiu ao longo dos últimos 7 anos, foi um enredo digno de um filme de terror, não apenas, mas sobretudo, no que ao Art. 19 da DUDH diz respeito. Tendo-se visto forçada a mudar a sua plataforma da ‘blogosfera’ para o ‘facebook’ (FB) – por ter sido neste que o dito jornalista proferiu as ofensas que despoletaram a sua DP/QC – Paz apenas viu ali o ‘bullying’ com que se confrontara na ‘blogosfera’ multiplicado exponencialmente. E tal multiplicação foi alimentada, nada mais nada menos, do que por elementos das duas classes mais poderosas nos espaços de opinião pública e publicada, formal e informal, real e virtual, em Angola: políticos (no caso, os de uma certa esquerda dita ‘democrática’, à qual o dito jornalista é afecto) e jornalistas (no caso, em solidariedade corporativista para com o seu colega alvo da DP/QC de Paz – por sinal, ela própria uma antiga jornalista).

E se políticos e jornalistas, i.e. elementos do ‘primeiro’ ao ‘quarto’ poderes, a alimentaram, alguns activistas de uma certa ‘sociedade civil’ angolana dita ‘revolucionária’ nas redes sociais (i.e. elementos do emergente ‘quinto’ poder), exponenciaram-na ao máximo, sobre um pano de fundo manchado por expressões de racismo e tribalismo, até que, tal como acontecera na ‘blogosfera’, Paz se viu virtualmente silenciada no espaço real da livre expressão de opinião pública e publicada. Tal silenciamento foi particularmente ensurdecedor pelo facto de Paz estar baseada fora das fronteiras de Angola, atendendo à hostilidade, permeada por laivos de xenofobia e chauvinismo, que lhe foi manifestada por tais elementos, alguns dos quais, em grupo, chegaram ao ponto de, abertamente, tentar encerrar os espaços de Paz no FB. Paz viu, assim, todos os seus direitos consagrados pelo Art. 19 violados por sectores da sociedade angolana que se suporia estarem na vanguarda da defesa da DUDH.  Efectivamente, Paz viu-se confrontada pela configuração de um quadro de normalização institucional do ‘bullying’, do assassínio de carácter, do linchamento político e da desumanização no espaço público nacional e internacional, sem que contra isso se pudesse legalmente defender.

Uma componente particular da ‘nuvem negra’ que se abateu sobre a vida virtual e real de Paz em consequência da sua DP/QC, foi o envolvimento de mulheres auto-designadas ‘feministas’ em defesa e apoio do dito jornalista. Esse facto – ao longo de uma década que viu emergir as terceira e quarta vagas do feminismo a nível internacional, a par de movimentos sociais reivindicativos como #MeToo e #BlackLivesMatter, entre outros –  tornou-se especialmente agravante à luz da ‘Declaração de Pequim sobre os Direitos das Mulheres’, também incluída na DP/QC de Paz, que estipula, entre outras disposições: “O direito à igualdade de direitos e à dignidade humana inerente a mulheres e homens consagrado na DUDH e em outros instrumentos internacionais de direitos humanos, em particular nas Convenções sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação e Violência contra as Mulheres; (…) O fortalecimento e o avanço das mulheres, incluindo o direito à liberdade de pensamento, consciência, religião e crença, o que contribui para a satisfação das suas necessidades morais, éticas, espirituais e intelectuais, em particular as que enfrentam múltiplas barreiras em virtude de factores como raça, idade, língua, origem étnica, cultura, religão, ou por integrar comunidades indígenas.”

Perante o exposto, do meu humilde ‘Observatório do Kalahari’, agradeço ao Observatório da Imprensa esta oportunidade de, em nome da Paz (uma filha da Mátria Angolana que acredito apenas pretender poder voltar a viver em Paz, Democracia e Liberdade na terra que a viu nascer e crescer e à qual dedicou toda a sua vida, dentro e for a das suas fronteiras), contribuir para quebrar o virtual silenciamento real a que foi condenada, sem culpa formada, apenas por ter tido o “atrevimento” de tentar exercer o seu direito a usufruir do Art. 19 da DUDH.

Muito obrigada.

 

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1 Comentário

  1. Ana Koluki

    P.S.: Apenas para sublinhar que o ‘jornalista senior’ alvo da ‘Denuncia Publica/Queixa Crime’ de Paz e’ tambem, em anos mais recentes, membro da ERCA (Entidade Reguladora da Comunicacao Social de Angola) – o que reforca esta constatacao: “(…) Efectivamente, Paz viu-se confrontada pela configuração de um quadro de normalização institucional do ‘bullying’, do assassínio de carácter, do linchamento político e da desumanização no espaco público nacional e internacional, sem que contra isso se pudesse legalmente defender.(…)”

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