Alexandre Solombe: “Não é líquido que temos liberdade. A propaganda diz que sim”(Iª)

Alexandre Solombe: “Não é líquido que temos liberdade. A propaganda diz  que sim”(Iª)

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      Alexandre Solombe: “Não é líquido que temos liberdade. A propaganda diz que sim”(Iª)

Cultura política e jornalismo, política pública sobre a imprensa, posição de Angola no ranking da liberdade de expressão e de imprensa, censura, manipulação e controlo da media pelos serviços secretos, entre outros assuntos, dominaram a conversa com Alexandre Solombe, jornalista com longos anos de experiência.

Agostinho Gayeta – Que comentário geral apraz-lhe fazer sobre o exercício do jornalismo em Angola?

Alexandre Solombe – Nós temos um jornalismo em Angola que é o reflexo de tudo. Portanto, o jornalismo é uma profissão que não está isolada do contexto em que nós vivemos. Temos um jornalismo possível que é o reflexo dos desenvolvimentos que a sociedade conheceu, falando particularmente desde que Angola sonhou, ascendeu, pois a independência. O período de guerra que foi mais ou menos até 2002 e enfim, todos os constrangimentos que foram sendo criados para o natural desenvolvimento que nós teríamos tido, no sentido de o jornalismo não ser aquele quarto poder que se imponha ser como é da praz das democracias, ou seja nós temos um jornalismo hoje que foi forjado, num contexto de ditadura. Primeiro temos o partido único, depois da independência em 92 houve aquele período de abertura, e com o retorno a guerra o próprio poder político foi calibrando a liberdade de expressão e de imprensa e tudo aquilo que pretendia que fosse a sua própria vontade.

Agostinho Gayeta – Actualmente o quadro permanece ou já há alguma mudança?

Alexandre Solombe – Nós estamos perante uma situação mimética. O camaleão geralmente ajusta-se ao meio circundante. Neste caso, fazendo o meio ambiente, e é mais ou menos o que nos temos, um regime que luta pela sobrevivência, manutenção do status quo e que entretanto vai usando as diferentes máscaras em função do momento que estamos a viver. Alguns falam com sucessos de aberturas, mas, eu sou um pouquinho mais conservador, mais cauteloso em relação ao declarar tal abertura. Tenho algumas dúvidas pelos factos mais relevantes que estão a acontecer, e que realmente põe-me preocupado.

Agostinho Gayeta – Que factos são esses? Pode apontar alguns?

Alexandre Solombe – Ontem estava assistir a televisão e estes casos são recorrentes a televisão pública de Angola. E vi as chamadas dos principais títulos, das principais notícias do país, como é da praxis e depois seguiu-se o desenvolvimento. Nós tivemos 30 minutos de actividade presidencial. Nós continuamos a ter uma imprensa governamentalizada e em televisão o minuto é se nós utilizarmos o critério de valorimetrias o minuto em televisão custa caro. Dar 30 minutos a uma actividade presidencial que estava para acontecer, isto é no mínimo um promocional extraordinário, uma propaganda, que faz o dia-a-dia, domina a praxis e isso não é diferente dos outros órgão de comunicação social de maior alcance. Estamos a falar nomeadamente da Rádio Nacional de Angola que tem o monopólio da cobertura nacional, apesar da ligeira concorrência que vai acontecendo agora com a abertura dos emissores da rádio Ecclésia. Mesmo assim, o percentual, se nós calculamos é muito insignificante comparativamente com a rede de emissores que a rádio nacional tem. Este é um outro aspecto de dominância da cobertura, o espectro radioeléctrico. A rádio nacional tem no mínimo trezentos emissores pelo país, incluindo os emissores dos estudos centrais da rádio nacional de Angola. Tens uma condição de monopólio e nestas condições não podes falar de equilíbrio ao nível da imprensa. Não me falem de liberdade apesar dos relatórios de algumas organizações internacionais. Falo nomeadamente da repórter sem fronteiras colocar Angola actualmente no 109º lugar do mundo, 12 lugar mais do que o ano passado, Angola estava no 121º portanto, há uma ascensão.

AG – É insignificante?

AS – Não, até há ascensão. É interessante que Angola ascenda ao 109º lugar, mas, a argumentação, as razões para as justificativas continuam a ser as mesmas. Angola tem 17 rádios privadas e 4 canis de televisão, mas, não há garantias que esses canais pertençam a pessoas distintas dos membros do MPLA. Este é um aspecto. Portanto, sem pluralismo não há a partida garantias que o João, o sicrano, etc. possam ter acesso a qualquer canal de comunicação. Não é suficiente. O problema do licenciamento das rádios e televisão parte dum vício de forma logo a partida. Nunca houve em Angola um concurso público que culminasse com a legitimação que é atribuição das frequências às pessoas que se candidataram a participar deste concurso. Está para a ascensão acontecer, vai ser a primeira vez quando tiver que acontecer.

O processo de licenciamento é eivado a partida deste deficit de transparência e exclusão de pessoas interessadas em participar neste concurso. Quando não há este acto simbólico, o concurso, a coisa é feita de forma restrita, para além da condição que está fixada na lei de rádio difusão ou a lei de impressa. Portanto, os mínimos de capital, está-se logo a partida a concluir que iniciativas menos sumptuosas que reflectem diversidade organizacional possam participar, e este é que trariam efectivamente maior pluralidade a partida no espectro comunicacional.

Quando isso não acontece nós temos que desconfiar, que 17 rádios são detidas pelas mesmas pessoas que já têm poder sobre os órgãos públicos de comunicação, portanto, isso não nos garante que venha haver liberdade de imprensa, principalmente nos momentos de pressão. Eu tenho dito que nos momentos de stress, quando nós avançamos às disputas eleitorais percebemos que efectivamente não eram sólidas as organizações, não há garantia de que há pluralidade, que disputas vão ser feitas no mesmo pé de igualdade. Porque há quem tem o controlo das 17 rádios, 4 canais de televisão. São as mesmas pessoas. Se fizer um rastreio vai perceber que o antigo ministro da comunicação social por exemplo é o dono da TV X, é o dono da frequência Y, que o membro do comité do MPLA é o dono da rádio X, da televisão X, são os mesmos indivíduos, o mesmo que se passa ao nível da banca onde os membros do MPLA, pessoas politicamente expostas, detêm controlo da banca. É o mesmo que se passa ao nível da média, e isto não garante que Angola independentemente do bom trabalho que têm estado alguns deles a fazer, digo ao nível da televisão, alguns têm estado a fazer um trabalho aceitável, mas, não dá garantias que essa pluralidade vá continuar nos períodos de pressão em que o partido no puder sente necessidade de reprimir a abertura que concedeu ao longo do tempo decorrido.

Numa sociedade onde a informação não circula, as pessoas são susceptíveis de tomarem decisões erradas.

 

AG – Há um consenso internacional de que a imprensa é fundamental para a democracia. Mas, há contextos onde ela desempenha um papel diferente, transformando-se num instrumento de manipulação e aprofundamento das tiranias. Em que quadro está a imprensa pública em Angola?

AC – Há uma relação estreita entre o desempenho do jornalismo e a democracia, porque o jornalismo assessora. É o motor, é a fonte de comparação da circulação da informação que alimenta as futuras decisões dos eleitores. Numa sociedade onde a informação não circula, as pessoas são susceptíveis de tomarem decisões erradas. As próprias campanhas de mobilização, as próprias informações sobre episódios calamitosos, episódios de desastre, surtos epidémicos são canalizados através do jornalismo para os destinatários. Ora, quando não há liberdade, embora aqui em Angola não se opõe muito quanto esse tipo de informação, mais estamos a falar da essência, da importância que tem o jornalismo na circulação da informação, quando isso não acontece, as pessoas são susceptíveis de tomarem decisões erradas.

Extrapolando isso para o contexto político, é claro que uma decisão das pessoas de Luanda, onde estão domiciliadas as 17 rádios, se não no total, estão mais avisadas se votam em A ou em B. Isto transmite um pouco mais de verdade nos resultados das próprias eleições. Qualquer decisão que dever ser tomada com base num nível de decisão é melhor tomada cá em Luanda do que no Kazombo, Katchiungo ou numa aldeia qualquer. Portanto, este é um direito que os Estados procuram garantir: direito à informação, sobretudo feito pelos jornalistas.

 Privar as pessoas de informação é crime. E o que nós assistimos em Angola é exactamente a vontade de um grupo de indivíduos que se esforça a evitar que os angolanos tenham conhecimento de maneira simétrica sobre fenómenos políticos, sobre candidatos, sobre as pessoas que concorrem para um pleito eleitoral, enfim, é no mínimo crime no século XXI.

AG – Fala-se ainda de uma manipulação que é assumida pela imprensa pública.

AS – Também. A manipulação funciona assumidamente feita pelos órgãos de comunicação social nos países guiados por ditadoras. Está muito presente. Não é distinto daquilo que passa nos meus de comunicação social de Angola. Uma informação que não inclui contraditório ou audição da outra parte, e ela é passada assim como é recebida, eventualmente por uma decisão passada por algum ponto que não seja da redacção. Portanto, são “as ditas ordens superiores”. É no mínimo propaganda, o que nós temos em Angola nos órgãos públicos. É essencialmente propaganda. Não estamos a fazer jornalismo propriamente dito, porque não há contraditório, não há cruzamento das fontes, da informação para um melhor apuramento, e equilíbrio da informação que é publicada.

AG – Essa falta de contraditório é resultante duma possível interferência do poder político nas redacções ou é porque há uma auto-censura da redacção?

AS -Tudo junto. Explico-me: o regime criou primeiro terror nas redacções, e hoje como disse de forma mimética, o regime está como que a passar sinais para o mundo que é diferente. E que mudou, como fazem os agentes de seguranças que estão nas redacções. Tornaram-se mais discretos, tornaram-se mais passivos, mas estão presentes e este trauma continua na cabeça de muitos jornalistas que viveram durante muito tempo e/ou têm sinais que quem tentou fazer diferente foi para rua.

Quando eu vejo profissionais do calibre de um Reginaldo Silva, de um Arlindo Macedo, duma Luísa Rogério compulsivamente colocadas na reforma é o que o poder passou a fazer num dado momento e hoje não são chamados para as redacções. Eu gostava de ter essas pessoas nas redacções para formar as pessoas, porque um licenciado em jornalismo que sai das universidades, não é necessariamente no dia seguinte um bom jornalista. Quando eles passam pelas mãos desses mestres, se tivessem a oportunidade de os fazer teriam maior prática. Isso é como um enfermeiro que recebe um médico num hospital, normalmente é um enfermeiro experimentado que consegue passar as primeiras informações, as primeiras acções práticas da actividade médica porque ele teve com a experiência que adquiriu. Essa capacidade de fazer.

E no jornalismo é a mesma coisa. Quando eu vejo essas pessoas, ainda hoje, na época que se fala em mudança continuando fora, na mesma condição, (se fossem reintegrados), para mim, isso seria o indicador da vontade de se construir um novo paradigma de jornalismo. Portanto, nestas condições nós continuamos na mesma.

A autocensura é o resultado desta pressão vivida. As ordens superiores não deixam de existir. Quem me garante a mim que a rádio nacional de Angola e os outros órgãos, como é o caso do jornal de Angola não recebem ordens do Ministro da Comunicação Social? Olha o Ministro da Comunicação Social emana de um partido político, ganhou as eleições, e ele não vai naturalmente fazer uma comunicação social isenta porque tem interesse que a comunicação social continue a funcionar como o garante da propagada para o regime do qual ele milita. Ou ele faz parte, nestes casos não temos como pôr de parte estas práticas, as ordens continuam presentes, o que deve ter acontecido é a sofisticação do modo como as ordens superiores são passadas.

A não existência do conselho de redacção nos órgãos de comunicação social é um outro problema. Estamos agora a caminhar para a constituição da carteira e ética dos jornalistas, muito provavelmente isto vai acontecer antes do final do ano. Mas estamos a ignorar a constituição dos conselhos de redacção. Os conselhos de redacção têm um papel muito importante que é o de fazer o jornalista, participar na fixação da pauta, e com a participação democrática do jornalista dificilmente ele aceitará que um tema que está no topo seja excluído, como acontece recorrentemente aqui em Angola. Há temas que não são abordados aqui na TPA, não são abordados na rádio nacional de Angola, não são abordados no jornal de Angola, porque? Isso não é obra do acaso, isso não acontece uma vez, acontece quase sempre, então, temos que pensar no que estávamos a dizer. Há efectivamente censura, há autocensura, mas, de maneira mais sofisticada.

Não estamos a fazer jornalismo propriamente dito…

 

AG – Mas isso só acontece com órgãos públicos?

AS – Há censuras até nos privados. Quase todos.

AG – Há interferência também dos partidos?

AS – Há interferência dos poderes político, das lideranças do partido no poder. Não no mesmo nível de poder de Estado, do chefe do executivo, mas, o líder dum partido tem poder. Por isso é que as pessoas não querem sair, mantêm-se ai e continuam a influenciar… Olhe para a estrutura destes órgãos privados, tem conselho de redacção? Não tem! Quem é o sócio, como é que está o organigrama deste órgão de comunicação social? Logo percebe-se chefe querendo baixa ordem para redacção cumprir. E é o que nós estamos habituados a assistir, acontece. Há aqui canais privados que realmente deixam muito a desejar, embora transpareçam que não, que se fala de tudo. Não há transparência, estou a falar dos contrapesos. Quando não há esses órgãos na comunicação social é claro que o chefe vai baixar a ordem através do director que é designado pela vontade do partido, depois os órgãos internos. Estou a falar do conselho administrativo, do conselho fiscal, dos órgãos internos que estruturam a própria organização empresarial não são suficientemente sólidos a garantia para que o jornalista possa fazer o jornalismo de verdade. Num contexto como esse, faz com que o jornalista passe a defender o seu pão, cumprindo as ordens que recebem.

Há um outro aspecto que tem a ver com a fraqueza financeira. A maior partes destes órgãos privados são para-governamentais porque são órgãos que recebem dinheiro do Estado, por intermédio do OGE. Como? Aquelas rubricas que aparecem no orçamento geral do Estado que a oposição as vezes discute que não são bem esclarecidas, são fundos que em última instância vão parar a estes órgãos privados e infelizmente para um grupo restrito, não são todos órgãos privados.

Há um outro elemento de concorrência desleal, veja por exemplo as antenas a nível dos audiovisuais. Como e onde as antenas dos órgãos radiofónicas estão colocadas. Compara a antena de A de um determinado órgão privado com antena de B. Por exemplo, da rádio MFM, LAC, ECCLÉSIA ou da Rádio Despertar.

A Rádio Despertar é um caso a parte porque apesar de ter uma torre muito alta tem a antena no meio. Quer dizer que só estão a explorar 50 metros sensivelmente. Um pouco menos que isso da altura que tem efectivamente aquela torre. Estou a falar de uma altura de 75, 60 metros no meio, portanto estamos a falar de 30 metros para ser mais objectivo. Agora compare com a antena da LAC que tem a torre por cima de um edifício que tem 20 e tal andares. Se nós multiplicarmos 20 por três que é mais ou menos a altura de cada apartamento vai dar 60 e eles têm a torre lá no terraço, portanto, tens uma torre com 100 metros de altura, quando nós procuramos sintonizar a frequência, pomos o automático a procurar, a qualidade do sinal da LAC é tão boa que sobrepõe o sinal de outras emissoras. Isso é concorrência desleal, e o INACOM não se preocupa com isso. Há cumplicidade, porque é tudo o mesmo partido a controlar o espectro radioeléctrico.

 AG – O problema que se coloca é que não há fiscalização?

AS – A fiscalização devia ser feita pelo próprio INACOM, os deputados e os ministérios.

AG – E se uma rádio privada quisesse colocar as antenas um pouco mais acima do exigido?

AS – Aí o INACOM já interfere. Eu fui director da rádio Despertar, antes disso coordenador da comissão instaladora, e logo que a emissão foi para o ar, tivemos a notificação do INACOM a dizer que o nosso sinal estava a chegar muito longe. Que estava a interferir no emissor do Uíge. Coisa que entretanto nunca aconteceu aqui com outra rádio e logo a seguir o INACOM começou um processo de fiscalização medindo o impacto em determinados pontos. Foi ao Bengo, foi a Barra do Kwanza para ver como é que estava a distribuição do sinal. Mas depois que a Rádio Despertar decidiu baixar o sinal da antena para o ponto que eu falei: 45 ou 35 mais ou menos, essas fiscalizações desapareceram. Pelo menos nunca mais ouvi falar, ou se há, não há publicação sobre isso que é fundamental porque tem de haver transparência.

O INACOM tem estado sob controlo dos serviços secretos.

 

Um outro aspecto é a potência dos emissores. Será que o INACOM conhece a potência dos emissores? O convencional, são 5 kilowatts, mas aqui em Luanda parece que há emissores que estão com 10 kilowatts, 15, 20 e por ai adiante. Isto é ou não é concorrência desleal? É vantagem do partido no poder? É isso que o INACOM enquanto instituto tem que fazer. Tem que fazer o controlo de facto. Não é fiscalizar uns e não fiscalizar outros.

A LAC tem as torres muito altas. E tem por conseguinte um sinal muito bem distribuído comparativamente com os demais emissores. Sejam de equipamentos convencionais, porque se não forem nota-se uma concorrência desleal, então, é tudo isso que é muito sofisticadamente controlado por este instituto que até há pouco tempo, creio que ainda eram e continuam integrados nele indivíduos da segurança do Estado. O objectivo era mesmo controlar. Para ali não ia qualquer tipo de pessoa. Esse sistema contínua presente. Portanto, a classificação da repórter sem fronteira os critérios pelos quais eles fazem a captura da opinião do estado de imprensa de Angola eventualmente não consegue capturar essas subtilezas todas.

AG – Qual é o papel que devia ser desempenhado pelas diversas organizações da sociedade civil para que se mude esse quadro da imprensa em Angola?

AS – A sociedade civil é como os jornalistas, minguam em função de todas as malícias que aconteceram nesta parte final da administração de Eduardo dos Santos. Estamos lembrados de disposições legais e/ou alteração da própria lei das associações que nalguns casos ameaçou a continuação de funcionalidade de algumas delas. As associações sobreviveram a muito custo, por isso, a dada altura muita gente abandonou e foi fazer outra coisa. Portanto, aquele sacrifício consentido, enfrentar um Estado todo-poderoso na altura com recursos vindos do boom do petróleo, não foi fácil. Hoje a sociedade civil que temos está a tentar reconstruir-se face a uma suposta abertura que dizem haver. Até ver. Ela devia ser mais proactiva e fazer sentir a sua voz relativamente àquilo que é o desempenho da imprensa em Angola, que não é bom. Falamos principalmente a nível dos órgãos de maior alcance. O resto está confinado a Luanda, já sabemos. Aliás, neste capítulo, o governo está tão a vontade que deixa para Luanda a abordagem mais ou menos livre, mas tem o perfeito controlo da cobertura a nível nacional. Eles percebem isto. Está a acontecer, estão a passar-se a vontade neste capítulo. Para além do que já disse, os trezentos emissores de investimento público feito num intervalo de tempo (curto); não estou contra que se invista muito para os órgãos públicos de comunicação social, mas, o meu problema está nos equilíbrios necessários e não na edificação duma imprensa, duma comunicação social fundada em um dos órgãos que é um absurdo, que é um monopólio. Todos sabemos que os monopólios não fazem bem as democracias. Estamos a ver os casos das comunicações. Creio que na mesma proporção que se fala da abertura hoje duma quarta operadora de telecomunicações, eu creio que se deveria também abrir, estimular ou reforçar a abertura da rádio Ecclesia para que possa fazer sentir a nível nacional.

AG – Abertura … que se deu a rádio Ecclesia com ascensão de João Lourenço ao poder significa alguma coisa?

AS – Devo dizer que pesou. Pesou para a classificação da repórter sem fronteira. Dois, três elementos nomeadamente: o impacto de João Lourenço criou espectativas. Não podemos ignorar isso. E ele foi bem recebido pela comunidade internacional.

A absolvição de Rafael Marques e de Marino Braz naquele julgamento, the judge made the law (o juiz aplicou a lei), que é um princípio de direito. No nosso caso aquele acórdão foi algo simbólico para uma maior liberdade da parte do jornalista, embora isso não entre em contradição com aquilo que eu disse anteriormente, mais a suposta abertura que houve a nível dos órgãos públicos de comunicação. Houve uma dada altura que transpareceu que tinha havido mais abertura. Eu fui chamado, fui a TPA 20 ou 30 anos depois. Ultimamente apareço na Zimbo. A qualquer altura o patrão pode decidir que eu não vá mais. Portanto, a minha presença na Zimbo não é sinal de abertura em si. Eu tenho estado lá. Não sei até quando.

AG – É um fingimento?

AS – Eu quero ver até onde é que isso vai. Eu e várias pessoas. Há gente que já está eclipsada novamente. Há um eclipse que já voltou a morar aqui nas telas das televisões, nos microfones da rádio. Portanto, foram estes quatro aspectos.

AG – Não é uma oportunidade para a sociedade civil intervir, falo das organizações nacionais ou internacionais, como a repórter sem fronteiras, MISA-ANGOLA, a própria Igreja?

O Estado não é obrigado a dar necessariamente dinheiro aos órgãos públicos e nesse caso fazendo tem que fazer de maneira equilibrada aos órgãos privados.

 

AS – A sociedade civil precisa de ser mais interventiva. Mas, como eu disse, ela está com mazelas que advêm do regime de ditadura que nós tivemos, (sobre o qual) não se dizia que era ditadura. Aliás, o mesmo ditador ganhava quase sempre legitimidade da comunidade internacional e o mesmo está a acontecer com João Lourenço. Agora tem a simpatia da comunidade internacional, daqui há pouco nós diremos se valeu ou senão valeu apena. O certo é que do ponto de vista qualitativo de progresso sólido ao nível da imprensa, as verdadeiras reformas não estão a acontecer. Por exemplo, o ministro da comunicação social disse que ia rever a legislação da comunicação social, por causa daqueles artigos draconianos que fixavam o mínimo de capital para se abrir uma rádio, um agência. Passados dois anos não esta a rever. Até hoje não se toca nenhuma palhinha para frente, não consegue aplicar as normas, a própria legislação. Estou a falar do artigo 15º, sobre o apoio a imprensa. Neste momento, há uma concorrência desleal quando o Estado financia a imprensa pública e não financia a imprensa privada. Isto cria ou não cria concorrência desleal? Cria! O Estado não é obrigado a dar necessariamente dinheiro aos órgãos públicos e nesse caso fazendo tem que fazer de maneira equilibrada aos órgãos privados. O problema de Angola são os órgãos públicos. Quando se dá dinheiros aos órgãos (…) públicos, que até podem não estar a prestar um bom serviço público, porque em teoria eles são bons. Que não seja em dinheiro, que seja em espécie, facilidade na aquisição do papel. Custa muito caro produzir jornais, os impostos, os direitos alfandegários, isenção disso, para quando uma rádio Ecclesia importar os equipamentos, fazê-lo numa posição mais confortável. Quando isto não acontece, estamos a promover injustiça.

Que critérios decidem que seja o A ou o B a receber dinheiro e não o X, devia haver um critério de valorimetria. Aferir da perfeição do nível de audiência. Eu tenho que ter um critério muito objectivo. Você dá dinheiro ao A por simpatia, porque faz propaganda para si. Isso não é justo.

É preciso que a sociedade civil intervenha efectivamente. Faça as intervenções a bem do bem público. O bem público neste caso são os direitos à informação. Sem dúvidas é necessário que haja esta intervenção. Como disse, a sociedade civil anda muito ressentida dum passado recente em que não pode fazer muitos movimentos, o MISA-ANGOLA ficou manietado por este contexto. Houve uma equipa que trabalhou até uma dada altura. Estamos a falar de 2007, altura em que terminou o mandato, e esta equipa continua a fazer entre aspas alguma gestão corrente, mas, não pode tomar decisões porque não consegue até agora organizar uma assembleia geral capaz de proclamar novos órgãos sociais. Houve duas tentativas: falo especificamente do MISA-ANGOLA, porque eu conheço. Houve duas tentativas que deram em fracasso. Há documentos de convocatórias assinadas pelo presidente da mesa da assembleia geral, Dr. Salvador Freire, mas as pessoas não apareceram. Isso diz alguma coisa. Ou as pessoas não estão interessadas ou então tem de se adoptar nova forma de organização. O certo é que nas duas convocatórias, principalmente a última, houve publicidade paga na rádio Ecclesia: há facturas, há documentos, houve o serviço de utilidade pública. Infelizmente, não houve uma grande aderência. É preciso não desfalecer e retomar para que ser reforce esse importante seguimento de pressão junto do governo.

 

As nossas liberdades em Angola são muito cosméticas…

 

AG – Como é que Angola está a nível da SADC?

AS – Do pouco desenvolvimento que houve em termos muito concretos, a melhor posição é da Namíbia. Está no 27º lugar (…). A Namíbia está acima de países como a França, Espanha, Estado Unidos está no 49º lugar, é o efeito Trump. Eles usaram isso para avaliar Angola e está no 109º lugar como disse. Subiu 12 lugares e as autoridades estão muito regozijadas com isto, e fazem propagada com isso. Angola já foi 93º colocado, no tempo de Eduardo dos Santos. É bom que tenhamos isso em referência. Creio que terá sido no ano 2004. Este ranking começou em 2002 e portanto, estamos agora em 2019. É hoje 109, Namíbia é o melhor colocado na região Austral.

AG – Isso mostra que Angola deve seguir o exemplo da Namíbia?

AS – Que vá buscar essa experiência, é disso que o país precisa. E eu por acaso vejo pouca interacção entre Angola e a Namíbia nesse contexto.

AG – Não há qualquer acordo?

AS – O protocolo sobre comunicação da SADC é o instrumento orientador dos países da região. Quer dizer que a Namíbia cumpre melhor que Angola. Angola desobedece. As nossas liberdades em Angola são muito cosméticas em termos de imprensa. Há uma liberdade tutelada pelo governo. É o grupo de indivíduos que administra as questões do Estado que controla. Eles fazem aberturas em função de conveniências. É por isso que há esta disparidade entre o 109º lugar que Angola ocupa e 27º que a Namíbia ocupa. Eu quero fazer aqui uma ressalva entre a Namíbia e o Gana que são os dois melhores colocados. Cabo Verde também não esta mal. Já disputou o 10º lugar. É desta experiência que nós precisamos beber. Precisamos de ter amigos. Estou a falar enquanto país com exemplos no mundo. Ao nível da Freedom House, a classificação é mais qualitativa. Angola é um país não democrático isto diz tudo.

AG – Essa classificação da Freedom House tem que ver com aquilo que nós assistimos, que é a criminalização da imprensa, responsabilização criminal do jornalista no exercício da sua actividade?

AS – Sim! Isto também conta. Continua uma criminalização muito presente. Agora até passando pela lei de imprensa que tem presente isso para o código penal que foi aprovado recentemente. Angola é dos países que rejeita descriminalizar os delidos de opinião e de imprensa. Há um lugar para transformar estes delitos em assuntos de abordagens sensíveis para o âmbito civil. O governo prefere manter a lei do bastão e não está nada revogado, apesar de ter havido um acórdão sobre o caso de Rafael e Mariano Braz. Efectivamente não está nada revogado.

AG – O caso de William Tonet que tem mais de 200 processos, o caso do jornal Hora H, o seu director tem agora cerca de 3 processos sobre tutela da justiça…

AS – São sinais, são ondas e isso depois funciona com efeito de choque para quem acompanha e percebe efectivamente que a situação da liberdade em Angola é muito discutível, e não é liquido que nós temos liberdade de expressão e de imprensa em Angola. A propaganda diz que sim. Mas, não pesa todos os pesos na balança, de modo que acaba por prevalecer a opinião da propaganda, que de certo modo (reforçada e legitimada) pela comunidade internacional, que está regozijada com este deslumbre do novo presidente que substituiu Eduardo dos Santos, parece que é tudo novo quando na verdade não é.

Nota: Na primeira semana de Outubro será publicada a segunda parte.

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