SALVAR A COMUNICAÇÃO EM ANGOLA

SALVAR A COMUNICAÇÃO EM ANGOLA

Crisóstomo Ñgala*│Quando a actividade jornalística se curva a interesses políticos e económicos (empresariais), a comunicação torna-se uma ideologia, um falso valor e alinha-se àquilo que não é autêntico.

Como salvar a comunicação em Angola? Esta é apenas uma questão para início de conversa, pois, exactamente no momento em que o distanciamento físico se fazia necessário por causa da covid-19, choveram as tristes notícias de que os principais órgãos de comunicação, em Angola, passaram a ser assumidos pelo Estado. Entenda-se Estado, o MPLA. (Aqui, neste texto não há espaço para entrar em detalhes das manobras, roubalheiras e desvios de finalidades do MPLA). Como se não bastasse, foi criado um canal temático e exclusivo ao desporto, um claro desprezo pelas questões culturais, ambientais e educativas.

Angola está no auge do totalitarismo e tirania monopartidária, e longe de ser uma sociedade aberta e democrática. (Vale lembrar que o Presidente da República, o Vice, o da Assembleia, os dos Supremos Tribunais, todos os ministros, governadores, administradores, directores de escolas, hospitais, empresas públicas etc, são todos do MPLA). Se muitos consideram que não é problema o Estado assumir tais órgãos, aí está o principal problema. Pois, isso é ameaça séria, porque obrigará que tais órgãos de comunicação pertençam ao mesmo sistema simbólico.

Estamos em plena era da revolução digital, do aumento de ataques cibernéticos, da quebra de sigilos, da enxurrada de informações, e que muitas delas poluem o ambiente social. Todos estamos expostos às fake news e temos dificuldades de distinguir uma opinião de um facto, sendo que os factos são moldados de acordo à vontade de quem os anuncia. E as redes sociais se tornaram campo aberto da informação à desinformação. É importante reconhecer que a informação de qualidade ainda é feita por jornalistas profissionais, é decisiva e salva vidas. Porém, quando a actividade jornalística se curva a interesses políticos e económicos (empresariais), a comunicação torna-se uma ideologia, um falso valor e alinha-se àquilo que não é autêntico.

É verdade que os órgãos de comunicação social desempenham um importante papel político de unidade e coesão nacional, social e cultural. Torna-se um problema quando a informação que veiculam é uma mercadoria para manipular, influenciar (negativamente) e vender uma imagem que não condiz com a realidade do interessado para a sua veiculação. Em Angola, a comunicação está mais ameaçada do que é ameaçadora porque, percebe-se, não é um valor central. Caso fosse, teríamos uma sociedade mais aberta, menos hierarquizada, menos desigual e mais plural. 

foto/makaangola.

Os principais órgãos de comunicação no país dos camaradas, em vez de serem um contrapoder e expor os excessos ou deficiências do executivo, foram transformados em lavanderia para clarear (branquear) a desgastada imagem do MPLA, partido no poder há quase cinquenta anos em um dos países mais pobres do mundo.

E é pena quando até os programas de debate deixam de ser ambientes de discussão aberta e passam a abrigar concurso de demonstração de lealdade. Faz tempo que em Angola carecemos de espaços que transformem factos em notícias, notícias em informações, informações em conhecimentos, e conhecimentos em atitudes. Os órgãos com maior audiência vendem certezas e miragens fascinantes, são miméticos, hipnotizam os desatentos, estimulam a violência simbólica por importarem modelos de gostos de um público que não resiste às armadilhas do capitalismo selvagem. Não fossem estes órgãos, acredito que nossos hábitos de produzir e consumir seriam outros e mais sustentáveis.

Quando leio no The New York Times  que notícia é tudo aquilo que ninguém quer ver publicado e o resto é propaganda, e me deparo com o anúncio da Folha de São Paulo de que sem oposição não há jornalismo, ponho-me a pensar no papel que desempenham os órgãos de maior audiência em Angola. Será que não prestam um desserviço à sociedade angolana? Alguém já pensou nos custos sociais e ambientais que provocam?

Sem alteridade não há comunicação. Comunicação não é informação nem marketing ou manipulação política. Comunicação é coabitação com o diferente. Comunicação é respeito ao outro, o diferente. Quando não há alteridade, alguém precisa salvar a comunicação. É preciso salvar a comunicação em Angola.

*Filósofo, artivista e frade franciscano.

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