Continuam os golpes contra a liberdade de imprensa em Angola

Continuam os golpes contra a liberdade de imprensa em Angola

Midia new
[Pt| rmc]
Nelson Sul d’Angola, correspondente da DW África em Angola, foi constituído arguido devido a artigos que terá escrito para um semanário angolano, embora desconheça o teor da acusação.

Várias organizações nacionais e internacionais têm denunciado com frequência a falta de liberdade de imprensa em Angola, onde muitos jornalistas são perseguidos, ameaçados e até mesmo presos, simplesmente por denunciarem escândalos de corrupção ou casos de desvio de dinheiro dos cofres do Estado.

O mais recente caso de intimidação envolve o jornalista Nelson Sul d’Angola, correspondente da DW África, e que na passada segunda-feira (04.05) foi convocado à Direcção Provincial de Investigação Criminal de Benguela para prestar declarações num processo em que foi constituído arguido.

Nelson Sul d’Angola disse à DW África que desconhece o teor concreto da acusação, mas, segundo as informações que lhe foram dadas pelo investigador Feliciano Domingos, esta está relacionada com alguns artigos seus publicados no semanário “O Angolense”, jornal onde trabalhou nos últimos cinco anos.

“No processo em si não consta quem é o alegado queixoso, e também não vêm anexados os artigos em causa, logo eu não poderia prestar nenhum depoimento, porque nas datas a que o processo faz referência provavelmente terei publicado mais artigos, logo não sei a quais é que o processo se refere”, declara Nelson Sul d’Angola.

Segundo o jornalista, a acusação faz unicamente referência a alguns artigos publicados entre 2013 e 2014. “Caberá à parte lesada provar em tribunal o conteúdo da investigação, mas o que eu posso dizer é que possivelmente essa posição terá a ver com artigos referentes a contratos que o Governo Provincial de Benguela celebrou com uma empresa de consultoria na área financeira e de elaboração de estudos conhecida por Galvão Branco – Consultores Reunidos. É uma empresa de um antigo vice-ministro da indústria, e também ex-deputado do MPLA, Adelino Galvão Branco.”

A empresa a que os artigos faziam referência esteve ligada ao Governo de Benguela através de um contrato de cinco anos (de 2008 a 2013), altura em que o então governador da Província, o General Armando da Cruz Neto, foi exonerado do cargo.

“Estes contratos eram de prestação de serviços ao Gabinete de Estudo Planeamento do governo de Benguela, a todas as direções provinciais, a todas as administrações municipais, e outras unidades orçamentadas pelo governo da província. Portanto, o que nós dissemos neste artigo foi que estes contratos não tinham transparência. Os contratos celebrados não foram objeto de concurso público, e questionámos sobre se houve de fato necessidade de o governo de Benguela os realizar, uma vez que se declarava com falta de verbas para pagamento e adjudicação de outras obras que eram mais importantes no capítulo social e de infra-estruturas, e de que a província de fato necessitava. Estamos a falar de contratos que rondavam qualquer coisa como um milhão de dólares mensais. Há mais empresas quer em Benguela quer no resto de Angola na área de consultoria, então porque é que só uma era a detentora de um contrato exclusivo na área da consultoria e assessoria ao governo desta província?”, questiona o jornalista.

Nelson Sul d’Angola aguarda agora mais esclarecimentos acerca deste assunto por parte da Direção Provincial de Investigação Criminal de Benguela.

“É muito difícil fazer jornalismo em Angola”

Também o jornalista Ramiro Aleixo, diretor do semanário angolano “Agora”, já teve de enfrentar os tribunais quando era dono do semanário “Kessongo” (” O Mensageiro do rei” em umbundo), precisamente por escrever artigos de opinião que nem sempre eram do agrado da elite política angolana.

Imprensa camera
[Pt| rmc]
Quando questionado sobre se actualmente os jornalistas angolanos continuam a ser perseguidos e impedidos de cumprir cabalmente a sua missão de formar e informar, Ramiro Aleixo afirma que a liberdade de imprensa em Angola enfrenta sérios obstáculos.

“É sempre muito difícil exercer jornalismo em Angola, não só porque o acesso às fontes é extremamente complicado e nunca se tem acesso a dados, principalmente relacionados com o exercício da própria governação, mas também porque há sempre uma grande celeridade no julgamento de casos denunciados pelos jornalistas, mas nunca em relação aos casos que os jornalistas levantam sobre corrupção, desvio de fundos públicos, entre outros. Não podemos dizer que não exista também alguma informação sensacionalista e de má qualidade que fere os princípios da deontologia profissional, mas isso também é uma consequência da falta de transparência.”

Depois de ter sido levado à barra do tribunal, Ramiro Aleixo considera que está ultrapassado este incidente com as autoridades angolanas, que o levou a encerrar o seu jornal.

“Digamos que também o próprio país evoluiu um bocadinho nesse aspecto, embora não muito. Mas eu, exactamente porque sabia que corria riscos, tive que pura e simplesmente encerrar o jornal. Uma das coisas que disse durante a elaboração do processo foi que não era financiado por ninguém: eu era o dono do jornal, eu vendia-o e nem sequer oferecia um exemplar porque isso entrava nos custos. Da mesma forma que fundei o jornal, no quadro de um direito de cidadania estabelecido pela Constituição, eu encerrei-o porque estava a correr riscos, para além de outras questões que se punham, como aterrorizarem as fontes para que elas não falassem, etc. É extremamente complicado”, declara o jornalista.

Hoje, como director do “Agora”, Ramiro Aleixo continua com a opinião de que exercer de forma transparente e sem sobressaltos um jornalismo credível em Angola é uma questão muito complicada: “A transparência é difícil, porque pressupõe que tenhamos acesso às fontes. Por exemplo, é difícil conseguirmos que algum ministro fale quando confrontado com determinada informação, porque eles próprios não consideram que a comunicação social privada esteja no mesmo patamar que os órgãos do Estado, que são manipulados, logicamente. Mas esquecem-se de que nós temos leitores, e esses leitores também são cidadãos, são eleitores e também fazem parte das contas no final de cada mandato ou no início da campanha eleitoral.”

Fonte: DW

RELACIONADOS:
Kipenas, escombros e o vazio: para os governantes estas são “escolas” em Malanje

António Salatiel* ǁ Escolas da “cor do abandono”, em Malanje, são o resultado da falta de investimento no ensino. Entende-se por escola, a instituição que se dedica ao processo de Leia mais

Miséria infantil em Malanje: Reflexo de um país “governado” por criminosos

António Salatiel*ǁ Crianças de rua é entendido como um fenómeno social que designa um grupo vulnerável de crianças que têm a rua como único lugar para a sua sobrevivência. Elas Leia mais

Fraude eleitoral inevitável. Onde está a fúria do povo para travar

Manuel Luamba* ǁ As próximas eleições gerais em Angola, estão previstas para 2022. Os angolanos já foram às urnas para escolher os deputados e o presidente da república por quatro Leia mais