Desobediência como virtude

Desobediência como virtude

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[Pt|rmc]
Por Domingos da Cruz | As instâncias de socialização — família, escola, media, igreja e outros grupos — não ensinam as pessoas a desobedecerem. Aliás, a desobediência é repudiada de forma permanente e sistemática. É vista numa lógica negativa. Quanto ao seu oposto, isto sim, é encarada como sinal de progresso moral.

Diria que a negação e a leitura negativa da desobediência é um erro secular. Este erro perpassa a educação formal e informal.

Na medida em que as pessoas tomam consciência da necessidade de exercer a sua cidadania, muitas vezes encontram-se frente à personalidades com cargos de responsabilidade públicas, que usam estes postos para interesses pessoais ou de grupo. Mais grave ainda, é o facto de em inúmeros casos, estas personalidades negarem os direitos dos cidadãos, incluindo a vida. Tudo pela ganância. Como diria, o antigo Presidente de Moçambique, Samora Machel:

«Um [ganancioso e malvado] é capaz de tudo. Vender a pátria só por causa da sua [malvadez de coração] e dos seus interesses individuais. Não sei se um ambicioso muda! A minha experiência prova que não. Muda de táctica, mas não elimina a sua [malvadez, ambição-negativa e ganância.]»

Esta afirmação é aterradora. As pessoas desta índole, ante a outrem é perniciosa. Torna-se ainda mais periculosa, quando uma pessoa com a Psicologia Moral acima expressa, ocupa um cargo público. A consequência lógica é que os cidadãos tornam-se vítimas de toda ordem.

Importa lembrar que estas personalidades que atingiram o nível mais alto da moralidade, foram protestantes. Foram desobedientes! O mundo não seria melhor se estes não fossem desobedientes ante a injustiça.

De acordo com a Psicologia Moral de Jean Piaget e mais tarde a de Lawrence Kohlberg, o desenvolvimento moral ocorre de forma gradativa seguindo níveis. Mas o nível mais elevado é aquele no qual os indivíduos agem por meio de valores abstratos, assentes por meio da sua consciência crítica. Mas esta moral madura tem sempre como fim último a justiça. Só as pessoas moralmente avançadas lutam pela justiça fundamental. Justiça no sentido de dar a cada um, aquilo que lhe é devido. Neste nível ético, enquadram-se personalidades como Nelson Mandela, Martin Luther King, Thomas Sankara, Jesus Cristo…

Importa lembrar que estas personalidades que atingiram o nível mais alto da moralidade, foram protestantes. Foram desobedientes! O mundo não seria melhor se estes não fossem desobedientes ante a injustiça.

Quando um sistema religioso, político ou outro, avilta a dignidade humana, só as pessoas desobedientes são capazes de mudar o curso da história. Neste sentido, a desobediência deve ser elevada ao nível das virtudes. Ela é uma virtude.

Rufino e Malala: dois divergentes e convergentes

Rufino Marciano António, adolescente de 14 anos foi morto no dia 06 de Agosto de 2016, por um militar do Posto de Comando Unificado (PCU), durante as demolições de mais de 600 residências no bairro Walale na zona do Zango II em Viana. Rufino Marciano António, foi morto pelo facto de ter questionado a demolição da residência onde morava com os pais. As operações de demolições, desalojamentos forçados e assassinatos foram conduzidas pelo General Simão Carlitos “Wala”.

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[Pt|RA]

Na tarde de 09 de Outubro de 2012, Malala entrou num autocarro escolar na província de Khyber Pakhtunkhwa. Um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu o lado esquerdo da testa e percorreu o interior da pele, ao longo da face e até ao ombro. Nos dias que se seguiram ao ataque, Malala manteve-se inconsciente e em estado grave.

A razão que levou o atirador a disparar contra a adolescente de 14 anos, foi o simples facto de Malala desobedecer à vontade dos radicais islâmicos, em não permitirem as mulheres a usufruirem o direito à educação.

Tendo como pano de fundo, a desobediência civil enquanto sinal de elevação moral, que ponte e hiato se pode estabelecer e identificar entre Rufino António e Yousafzai Malala?

Parece-me simples identificar pontos de convergência: os dois são desobedientes, os dois demonstraram sentido de justiça fundamental, os dois tinham 14 anos no momento em que foram vítimas, os dois são de países autoritários, os dois lutaram por direitos (uma pelo direito à educação e outro pela direito à habitação), os dois são altruístas, os dois são exemplos de cidadania e luta pacífica, os dois ficaram para sempre nos anais da história. Em última análise, lutaram pela dignidade humana.

São divergentes? Entre ambos não. Mas são divergentes ante e em relação aos seus algozes.

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[Pt|rmc]

Pensadores influentes concordam com a tese que vimos defendendo. Entre os quais está Oscar Wilde: «O progresso é uma consequência da desobediência e da rebelião. […]A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralizante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência do seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá- lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. […]. [os contestatários] se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vivem e semeiam o descontentamento nele. É por isso que [eles] são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria». Vai mais longe ao defender que «a desobediência, aos olhos de qualquer pessoa que sabe um pouco de História, é a virtude original do homem. É pela desobediência que se fizeram progressos, é pela desobediência e [rebeldia que o mundo está em progresso continuo. O obediente mantêm as coisas tal como estão]».

Rufino e Malala estão em sintonia com a virtude-força do progresso da humanidade, como confirma o argumente de Ramalho Eanes: «A desobediência civil não é o nosso problema. O nosso problema é a obediência civil. O nosso problema é que as pessoas […] têm obedecido às ordens de [chefes] e milhões têm morrido por causa dessa obediência. O nosso problema é que as pessoas são obedientes na [maior parte do mundo] face à pobreza, fome, estupidez, guerra e crueldade. O nosso problema é que as pessoas são obedientes enquanto as cadeias se enchem de pequenos ladrões e os grandes ladrões governam o país. Esse é o nosso problema».

Ora, a desobediência que visa a humanização é uma virtude. Ela é igualmente uma arma importante para quebrar as fontes que alimentam o poder de quem oprime.

 

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