Domingos e Escárnio: tema de discussão

Domingos e Escárnio: tema de discussão

Thomás Sankara ǀ O escárnio foi tema de estudo e analise. Serviu inclusive como um trabalho, exame final na disciplina de écrivains philosophes, ou seja, escritores filósofos, uma disciplina no curso de filosofia, na URCAUniversité de Reims Champagne-Ardenne, que frequento. O tema interessou-me desde o primeiro contacto, em seguida solicitei o autor, Domingos, explicando a motivação, aceite o meu pedido iniciei a abordagem. Foi um exercício difícil, reduzir O escárnio em poucas paginas, um romance escrito por visivelmente um grande leitor de Foucault, Achille Mbembe, George Orwell e outros filósofos, com uma complexidade imensurável e difíceis de leitura.

Foi com prazer ler a obra a fornecer um ponto de vista e, mais orgulhei-me por ser um autor e filósofo africano, angolano! Talvez isso motive outras pessoas, a estudarmos os nossos autores. Teria muita vergonha se apresentasse um autor europeu, americano ou asiático (sem tirar o mérito), quando enquanto africano, temos autoridades no campo de filosofia tais como Achille Mbembe, um filósofo que retoma os trabalhos de Arendt, Foucalt e Agamben de natureza biopolitica, e explica que existem estruturas no mundo contemporâneo com objectivo de provocar destruição de outros grupos, necropolítica, i.e.: o poder de ditar quem pode viver e quem deve morrer e em que condições, acrescento. Mbembe denuncia formas de existência social nas quais vastas populações são submetidas às condições de vida que os conferem um status de mortos-vivos;  Wole Sonyinka, que assume uma perspectiva cultural ampla e o drama da existência humana, concebe que qualquer cidadão tem que estar comprometido com os valores da liberdade ,verdade e justiça; Jean Bosco Kakozi Kashindi, filósofo que operou na mudança da concepção da identidade a partir do eu sou porque tu não és (concepção excludente) para o eu sou porque nós somos, e dado que somos então eu sou (concepção includente), ubunto. Kashindi demonstra um dos principais deslocamentos teóricos e práticos da racionalidade do continente africano em relação ao olhar ocidental hegemônico. Ubuntu, filosofia africana que confronta o poder auto-destrutivo do pensamento ocidental. Com isso quero dizer nossos autores importam, pela afirmação e autoridade no campo da ciência, filosofia e outras áreas de estudo, devem ser estudados, eis a razão de ter escolhido O Escárnio.

Retomando o trabalho apresentado e que resumo aqui, teve uma primeira parte com a apresentação do autor e seus trabalhos e posteriormente a narração das minhas ilações sobre  o romance.

Obras precedentes do autor em análise

Para onde Vai Angola (2008), Quando a guerra é necessária e urgente (2010), Liberdade de expressão e de imprensa: implicações éticas na infância (2011), Ética educativa à luz da racionalidade comunicativa (2013), Liberdade de imprensa em Angola: obstáculos e desafios no processo de democratização (2013), África e Direitos Humanos (2014), Ferramenta para destruir o ditador: Filosofia política da libertação para Angola (2015), Angola amordaçada: a imprensa ao serviço do autoritarismo (2016), Racismo: O Machado Afiado em Angola (2019), Direitos Humanos na era das incertezas (2020), e finalmente O escárnio (2021), o nosso tema de estudo neste ensaio.

No coração da obra

O escárnio é um romance escrito em português, de carácter político, filosófico e social. É uma mistura de textos e realidades que descrevem uma Angola utópica, a Angola com que sonhámos – democrática e livre. É de valor histórico, político, social e cultural inimaginável. Contem uma lição de ética e moralidade que os jovens devem ter consciência. Também descreve a vida miserável dos defensores da razão, da ética, da moral, da dignidade humana e, acima de tudo, dos direitos humanos em sociedades onde o mal é uma virtude. É claro que esta vida dos defensores dos direitos só é miserável aos olhos dos seguidores do mal e daqueles que não têm moral e ética e desconhecem o valor do bem. Do mesmo modo, descreve neste livro o estado comatoso das chamadas universidades.

Uma grande questão reside na pessoa da loucura neste romance. Esclarece ignorando a ênfase excessiva sobre a importância do louco, que para muitos é um não pensante. Mas como em Hamlet de Shakespeare, o Rei Cláudio pensa que por vezes é preciso estar louco para descrever as coisas como elas são. Este é um apelo importante e uma descrição política da corrupção e outros males, incluindo a lisonja, um sinal de desespero e falta de confiança num futuro melhor simplesmente por causa da crença de que o país já não faz sentido.

Isto é naturalmente causado por mortes éticas e morais, tais como a situação real nos hospitais e a falta de dignidade e respeito pelos entes queridos, ou seja, deficiências de pensamento, sensibilidade e imaginação como diria Günther Anders. Em O Escárnio, descreve-se um chefe de todos, que é o ditador. A postura omnipresente do sistema autoritário, é mais do que clara no romance, pelo que, naturalmente, a filosofia e arte permitem-nos ver certas realidades e, consequentemente, torna-nos sensíveis. Numa linguagem simples para nós compatriotas, Angola é descrita neste romance de uma forma muito clara, sem vazios, uma crítica perfeita.

A história que O escárnio relata, tem lugar num país imaginário, a República de Matobu, governada por um regime ferozmente repressivo, onde quase não há lugar para o bem daqueles que pensam do lado oposto da corrente do poder instalado e do seu código social. De outra forma, ele relata por exemplo existência de um departamento de crimes teóricos, que na realidade existe em Angola porém com outro nome. Os departamentos deste país imaginário recordam-nos o de George Orwell de 1984. Em O escárnio existem diferentes departamentos de repressão, departamento de pensamento e sociedade estática, departamento de crimes teóricos, que podem ser facilmente comparados com os descritos em 1984, por exemplo, o Ministério da Verdade, o Ministério da Paz, o Ministério do Amor e o Ministério da Abundância – que eram dominados por um único partido cujo líder se chama Big Brother, um ditador que monitoriza constantemente os cidadãos e tortura todos os que se rebelam contra ele. Esta é uma característica prática em Angola.

A personagem principal é o Professor Verax Yan, que vive numa cabana rudimentar. Num quarto escuro, abafado e poeirento e invadido por baratas constantemente, ratos gordos e percevejos, todos misturados. Ele vive nesta realidade que não é o resultado de negligência, muito menos de uma crise existencial, mas da imposição de uma divindade! Esta instância divina é mais ou menos análoga à apresentada por Arthur Schopenhauer, a vontade universal, da qual emanam todas as outras vontades.

Os métodos de controlo populacional e a situação desumana das prisões estão claramente descritos, sendo também possível comparar a prisão de Verax neste romance com a de Winston em 1984. Perante a resistência deste último, O’Brien decide utilizar meios extremos e envia-o para o Quarto 101, onde todas as pessoas que ousaram opor-se ao Partido acabaram por se opor. Nesta sala, O’Brien diz a Winston que irá enfrentar o seu maior medo. Winston tem regularmente sonhos em que os ratos se aglomeram. O’Brien despeja o conteúdo de uma gaiola cheia de ratos no seu rosto e espera que os roedores devorem o rosto de Winston. Winston implora-lhe que pare e convida-o a torturar Júlia em vez disso. O objectivo de O’Brien era fazê-lo desistir de Júlia. Com a sua mente virada, Winston é libertado. Ele cruza-se com Julia, mas agora não sente nada por ela. E acaba aceitando totalmente o controlo do Partido sobre o povo.

Em O Escarnio, a experiência de Verax é que ele viveu na prisão nas piores condições possíveis e teve a sua ética posta em prova, após complicados momentos de tortura física e psicológica, como o descrito no livro do filósofo Michel Terestchenko (professor da disciplina pela qual faço este trabalho), Du bon usage de la torture, ou comment les démocraties justifient l’injustifiable, que relata actos de barbárie na prisão de Abu Ghraib (páginas 61-66), como técnicas de interrogatório coercivo, manipulação do ambiente, ruído ensurdecedor, posições dolorosas e falta de preparação por parte do pessoal militar que o maltratou e outras técnicas utilizadas pelos especialistas em inteligência. Obviamente, as autoridades deste país fictício justificam a tortura tal como descrita no capítulo XX deste romance.

Durante o interrogatório de Verax, o professor usa métodos filosóficos, espécie de diálogo Socrático e recusa-se repetidamente a responder a perguntas directamente, o que deixou o juiz nervoso e agitado.

Hipoteticamente, o sofrimento e abuso presentes neste romance, refere-se à experiência que Domingos da Cruz ─ o verdadeiro nome de Mbomba Mudiatela ─ e dezasseis dos seus companheiros enfrentaram em 2015, quando decidiram estudar o livro Ferramentas para Destruir o Ditador (também de da Cruz), que terá sido uma adaptação da obra de Gene Sharp From Dictatorship to Democracy, por isso, acabaram encarcerados, acusados de golpe de estado.

Na página 75, capítulo XI, o autor também descreve em pequenas linhas a teoria de Achille Mbembe , necropolítica, ilustrada na conversa telefónica entre o Professor Verax Yan e sua amiga Niara sobre o enterro de Kambila.

O livro gira em torno de um cidadão que olha para a realidade da sociedade em que vive e sugere caminhos a seguir, na sua opinião, nas mais variadas áreas, que vão desde a económica, política e social, que apresenta como diferentes, mas não em outras partes do mundo.

O trabalho é uma distopia universal de um lugar imaginário onde todos os discursos e práticas divergem radicalmente.

Este país imaginário não oferece escapatória para a bondade, o amor, a honestidade e a sensibilidade, e aqueles que arriscam viver e expressar estes valores, encontram-se cobertos por um fogo pesado, como Verax, Niara e Kambila, que aparecem como luzes da racionalidade, são derrotados pelas forças das trevas e tudo acaba numa brutalidade indescritível e indizível.

Demonstra claramente a importância da criação e da imaginação na literatura. Este romance descreve a sociedade angolana de uma forma fictícia e permite-nos compreender coisas escondidas e tornar visível o que não podemos ver sem a ajuda da arte.

O escárnio foi publicado pela Cordel d’Prata, Portugal, 2021.

 

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3 Comentários

  1. Feliciana Morais

    Muito interessante o comentário sobre a obra em referência.
    Apesar de ainda não ter tido oportunidade de ler, fiquei bastante curiosa.
    Parabéns caríssimo Thomás Sankara.

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