João Lourenço: No princípio era o verbo e o verbo continua verbo!

João Lourenço: No princípio era o verbo e o verbo continua verbo!

Domingos da Cruz │Se sou membro de uma organização criminosa durante quatro décadas, na qual desempenhei vários cargos por “vontade própria”, mas, sempre nomeado pela vontade universal e suprema, não há registo de que me opus a qualquer acto maléfico do grupo, o quê é que me pode afastar do modus operandi e da cultura grupal? Por outras palavras, o que é que me torna bom subitamente? Ter substituído a vontade suprema torna-me uma pessoa ética?

Em virtude dos factos, a vontade suprema e absoluta vê-se obrigada a retirar-se parcialmente do jogo de morte. Para preservar a continuidade da organização criminosa colossal — da qual dependem para manter os interesses instalados — colocam-me para a prossecução do ciclo extractivo das instituições.

De acordo com o filósofo Dermeval Saviani, sempre que um grupo promotor da opressão, da humilhação e da negação da humanidade faz qualquer mudança, por mais ínfima que seja, realiza-a para perpetuar os seus interesses.

Nunca se esqueçam que os grupos são mais imorais do que os indivíduos. Mesmo que a luz dos sentidos e da «imbecilidade colectiva» parece favorecer a liberdade e a promoção dos valores universais, é sempre um reposicionamento (arranjo), fundado na ideia de que já não dá para continuar tal como fizemos até aqui. Temos de fingir alguma rotura favorável a desafogar o regime, e, consequentemente, gerará um abrandamento das forças e lutas pela liberdade. Este arrefecimento do ímpeto libertário, será fruto da nova atmosfera virtual e cosmética criada.

Cuidado. Nós estamos a assistir à implementação do “mecanismo de recomposição da hegemonia da classe dominante”, como diria Saviani. Esta recomposição pode levar a um fénix que aprofundará a nossa angústia e sofrimento em virtude do sequestro colectivo a que estamos reduzidos. Se nada for feito, é só uma questão de tempo para que a máquina de propaganda reactive o salmo. Sobre o que fazer, dirijo-me a esta entidade colectiva: povo. Esta entidade composta por cada um de nós.

“(…) os grupos são mais imorais do que os indivíduos”

Este arranjo que significa mudar para ficar tudo como está. Só para salvar o regime e os interesses do grupo, não é delírio do autor deste texto. Pessoas dentro da máquina, filhos da tirania e beneficiários da tirania, fizeram questão de dizer isso com clareza involuntária, e denúncia acidental: «a sucessão do presidente (…) é inevitável, politicamente acertada, necessária para permitir a continuidade e a renovação do regime (…). É preciso entender que o que está em jogo é o regime (…). Ninguém minimamente atento pode ignorar o actual cenário internacional, que não é, em absoluto, propício ao excessivo prolongamento no poder das lideranças políticas. (…) O MPLA é um partido experimentado, com grande capacidade de adaptação e cuja “máquina” não deve ter paralelo em mais parte alguma do mundo. Tudo isso torna correcta, necessária e perfeitamente viável a sucessão do presidente», escreveu João Melo, no artigo A Sucessão de JES.

Ele prossegue o seu argumentário, afirmando que o desgaste da autoridade e da imagem do animal político que conduz o partido do qual ele é parte, em função do tempo que levava no poder, daria azo a ataques para sua queda e consequente derrocada do regime. Por isso, o caminho para a salvação daquilo que é do interesse grupocêntrico é o rearranjo que foi feito para a continuidade e a «renovação do regime».

Antes do simulacro eleitoral de 2017, o dito cujo acima expresso, terá escrito o artigo — Angola: a Sucessão — no qual terá evocado as mesmas ideias e lembrou as ideias expressas nos parágrafos precedentes.

“(…) por que “todo um povo” se pode deixar embalar com verbos, com epístolas, com o discurso que imana da mesma máquina e de quem é parte e produto da máquina, mesmo quando nada, literalmente nada mudou.”

Lançadas estas ideias propedêuticas, coloco a questão central que motivou este artigo: por que “todo um povo” se pode deixar embalar com verbos, com epístolas, com o discurso que imana da mesma máquina e de quem é parte e produto da máquina, mesmo quando nada, literalmente nada mudou. Na realidade está ali o eterno retorno? Será que o novo-antigo/antigo-novo cega? Este novo-antigo é tão poderoso assim psicologicamente ao ponto de instalar a névoa colectiva e a cegueira nacional mesmo quando tudo está igual? Será difícil distinguir a prótese à uma perna real? Não é possível distinguir entre os lábios carnudos pelo batom e os lábios carnudos de Angelina Jolie? É necessário metapós-doutoramento para fazer a distinção entre um rosto maquiado e um rosto nu? A nebulosa é tão densa ao ponto das pessoas não serem capazes de distinguir sensação psicológica de mudança à mudança real nas suas vidas?

A compreensão dos sinais dos tempos e do homem que substituiu a vontade universal, encaixa perfeitamente na lógica binária: Todo homem é mortal/ Cipião é homem/ Logo, Cipião é mortal. Assim, se a Máfia é prejudicial/Lourenço é da mafia/ Logo, Lourenço é prejudicial!

A técnica silogística também alerta-nos para o facto de que nem sempre que as premissas casam, correspondem com a realidade. Por isso, se ignorarmos esta dedução lógica, concluiremos a necessidade de imprevisibilidade a que os fenómenos estão sujeitos e nos impõem.

“A nebulosa é tão densa ao ponto das pessoas não serem capazes de distinguir sensação psicológica de mudança à mudança real nas suas vidas?”

Análise da realidade à luz do holograma e do pensamento complexo

De acordo com o sociólogo, historiador, antropólogo e filósofo Edgar Morin, é um erro analisarmos e tentarmos compreender a realidade, seja de que natureza for, desde uma perspectiva unívoca e autoreferente.

Há um exemplo curioso que contribui para a compreensão desta perspectiva, a que Morin chama pensamento complexo: este ano (2017), o prémio nobel da economia foi Richard Thaler, por explicar a realidade económica com base em fundamentos da Psicologia. Quem diria! — Economia comportamental. Isto significa que é insustentável e inadequado tentar escolher uma perspectiva para compreensão dos fenómenos.

A personalidade enquanto objecto de análise, inicialmente era identificada com a Psicologia, e hoje deixou de ser refém desta área do conhecimento. Por isso, ela é objecto da Pedagogia, da Ética/Moral, da Antropologia, da Biologia e da Sociologia. Todas estas ciências se ocupam também do aborto. A elas soma-se a Bioética e a Medicina.

A compreensão mínima da realidade que Angola está a viver na era da sucessão presidencial, pressupõe análises ponderadas. Tal ponderação passa por olhar vários ângulos e perspectivas da realidade. Não estou a dizer que a análise à luz do pensamento complexo e holográmico são infalíveis. Simplesmente parece-me ser o método mais adequado de compreensão da realidade nos nossos tempos. Não estamos a defender a verdade total. Adorno diria que «a totalidade é a não verdade».

Os hologramas, segundo o projecto Ciência Viva «são registos de objectos que quando iluminados de forma conveniente permitem a observação dos objectos que lhe deram origem. […] os hologramas registam também a fase da radiação luminosa proveniente do objecto. Nesta fase está contida a informação sobre a posição relativa de cada ponto do objecto iluminado, permitindo reconstruir uma imagem com informação tridimensional.»

Foto/rmc Super// O país continua um exemplo perfeito de caos institucional.

A introdução da dimensão hologramática no método pensamento complexo é uma escolha analógica. E alerta-nos para evitarmos análise total e absolutamente especializadas como caminho seguro em busca da verdade. Claro, verdade provisória, questionável, falível e efémera. É mister evitar simplificação e simplismo bacoco.

Sobre o holograma como parte constitutiva do Pensamento Complexo, como método de compreensão e análise da realidade, a obra, Introdução ao Pensamento Complexo vai mais longe, dizendo que num holograma, o ponto mais pequeno da imagem do holograma contém a quase-totalidade da informação do objecto representado. Não apenas a parte está no todo, mas o todo está na parte. O princípio hologramático está presente no mundo sociológico a par doutros mundos. A ideia do holograma ultrapassa, quer o reducionismo que só vê as partes quer o holismo que só vê o todo. É um pouco a ideia formulada por Pascal: «Não posso conceber o todo sem conceber as partes e não posso conceber as partes sem conceber o todo».

Se não perder de vista que o homem é produto do seu meio e do seu percurso histórico, facilmente poderemos compreender Lourenço na lógica do Pensamento Complexo. E daqui resultará uma inferência mais ou menos segura sobre o que dele se espera.

Disto nos alertou involuntariamente Dino Matross, em entrevista concedida ao jornal Sol (01.10.17): «João Lourenço não faz nada sozinho e (…) sem o partido». Do ponto de vista essencialista, Dino alertou aos que estão a cantar hossana nas alturas, que o regime, o sistema é o todo. Lourenço é somente a parte. Ou seja, é um produto e fragmento do sistema com o qual não estabeleceu ruptura. A parte subordina-se ao todo. A parte partilha a mesma natureza do todo!

“[João Lourenço] (…) é um produto e fragmento do sistema com o qual não estabeleceu ruptura. A parte subordina-se ao todo.”

«Os modos simplificadores do conhecimento mutilam mais do que exprimem as realidades ou os fenómenos que relatam, se se tornar evidente que produzem mais confusão que esclarecimento.», afirma Morin.

O estágio em que as ferramentas de análise se encontram, é tão avançado que a minha inquietação é: porque na realidade angolana não os usamos? Parece que a mesma velocidade vertiginosa com que os outros povos usam os recursos científicos com vocação universal (mesmo que seja possível adaptá-los), tal velocidade no nosso contexto, também se verifica, mas, para propagar «o erro, a ignorância, a cegueira.»

Ensaio sobre a cegueira nacional

Oh! Meu povo povo,

Porque o teu desejo de morrer é tão intenso quanto a ganância?

Porque amas profundamente a opressão?

Porque vês a solução naquele que é parte da crise e criador da crise?

A tua intelligentsia colectiva esfumou-se tão profundamente.

Ao ponto de esperar colectar mamões num pomar de gindungo,

Oh! meu povo…

Porque deixaste de sonhar?

Porque assassinaste a utopia?

Porque mergulhaste na sabichonice?

E no amor ao nada, mesmo que seja só o verbo.

Oh! Como você se embala, só com o verbo!

Retornemos ao pensamento complexo enquanto nosso instrumentos e método de análise. De acordo com o expoente máximo do pensamento complexo, Morin, a complexidade é o tecido de acontecimentos, acções, interacções, retroacções, determinações, acasos, que constituem o nosso mundo fenomenal. A complexidade apresenta-se com os traços inquietantes da confusão, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, incerteza. Daí a necessidade para o conhecimento, de pôr ordem nos fenómenos ao rejeitar a desordem, de afastar o incerto, isto é, de seleccionar os elementos de ordem e de certeza, de retirar a ambiguidade, de clarificar, de distinguir, de hierarquizar.

Se a sociedade é esta rede complexa de forças e contra forças em jogo, então, o entendimento e análise da realidade política intricada com múltiplas esferas não se compadece com charlatanismo e tudologia. É necessário o uso das ferramentas básicas de análise que a ciência tem disponível. Quanto a mim, o pensamento complexo é o caminho que a consciência entende ser o mais adequado.

Lembremos que o pensamento complexo entende que a realidade, os fenómenos são marcados por categorias como a incerteza, ambiguidade, acaso, ordem e desordem. Estas categorias expressam a arquitectura da sociedade.

Para tornar este emaranhado minimamente inteligível, requer o auxílio do método de análise de conjuntura.

Na sua obra, «Como se faz análise de conjuntura», Herbert de Souza, terá chamado a atenção sobre a necessidade de estarmos atentos ao fluxo de factos e fenómenos sociais. Distinguir o essencial do acidental. Separar o necessário e o acaso. Em suma, uma boa análise de conjuntura, pressupõe a capacidade de separar factos genuínos e fenómenos fabricados em laboratório para a distracção dos cidadãos em relação ao essencial.

“(…) uma boa análise de conjuntura, pressupõe a capacidade de separar factos genuínos e fenómenos fabricados em laboratório para a distracção dos cidadãos em relação ao essencial.”

Para a análise da realidade, é preciso identificar as seguintes categorias que estão em jogo e podem levar o país para certa direcção: acontecimentos, cenários, actores, relação de forças e articulação/relação entre estrutura e conjuntura. Proponho ao leitor uma paragem. Releia o parágrafo anterior e coloque a si mesmo as seguintes questões: quais os grandes acontecimentos reais e não fabricados em Angola? Quais são os actores em jogo? Tendo em conta a forma como chegou ao poder, Lourenço é actor ou figurante? Diante deste cenário, relações de força entre estrutura, conjuntura e actores o que é que pode acontecer de bom para o interesse comum? Quem realmente pode mudar a estrutura e as relações desequilibradas de poder? Há pelo menos cinco gestos/acções concretas que coincide com os discursos de Lourenço? Porque não apresenta a sua declaração de bens se quer combater a corrupção? Se quer uma imprensa livre sob controlo do partido-Estado?

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2 Comentários

  1. Gilberto Teixeira

    É verdade que a lógica binária não é uma verdade absoluta (que também não precisamos na ciência) mas ainda revela uma verdade contemporânea, teríamos um mínimo de aceitação na verbalização de Joãozinho se depusesse os seus pecados no altar da nação como é o caso do seu património acumulado ao longo dos tempos eduardista. Quem evangeliza sem depor os seus pecados no altar é DESENVERGONHADO.

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