



Por Nuno Dala || A língua é o principal portal de acesso à cultura de um determinado grupo ou povo, daí que aprender uma língua é adentrar-se no universo cultural dos usuários da mesma. Porém, abalizemo-nos dos conceitos construtores do título deste artigo.
O que é a língua? Podemos definir língua como sendo um sistema complexo de signos abstractos, regido por gramática, que serve como meio de comunicação entre seres inteligentes, como é o caso dos seres humanos.
Do ponto de vista da linguística comparada, sob os critérios da realização e da articulação, as línguas humanas podem ser [1] orais ou [2] de sinais (gestuais). Quanto às línguas de sinais (LS), durante muito tempo, foram marginalizadas e remetidas à condição de “mímica”, “mímica complexa” ou “representação icónica das línguas orais”.
Sá (2006:132-133) descreve esta situação: “As línguas de sinais têm sido desprestigiadas desde há muito. Geralmente, os círculos antagónicos às línguas de sinais têm [sugerido] que elas surgiram como decorrência paliativa da deficiência, de uma impossibilidade de acesso a algo melhor e até mais humano – a oralidade –, e que o uso de sinais é ‘coisa feia’, ‘coisa de macaco’. Não se enfatiza que os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em geração, uma língua natural, complexa, abstracta, numa modalidade de recepção e produção diferente da que utilizam os ouvintes, a modalidade viso-gestual. Acreditam alguns que as línguas de sinais foram inventadas por professores de surdos como recurso educacional ou comunicativo, desconhecendo que, pelo contrário, as línguas de sinais são fruto de um processo construído histórica e socialmente pelas comunidades surdas, até mesmo como produto histórico da sua resistência à dominação.”
Stokoe propôs também que um sinal pode ser decomposto em três parâmetros básicos, que são: [1] o lugar (no espaço onde as mãos se locomovem), [2] a configuração das mãos (ao se realizar o sinal) e [3] o movimento das mãos. Estes são efectivamente os traços distintivos dos sinais.
Skliar (1998b:24) considera que “os trabalhos da linguística pós-estruturalista avaliaram o estatuto linguístico das línguas de sinais como línguas naturais e como sistemas a serem diferenciados das línguas das línguas orais: o uso do espaço com valor sintáctico e a simultaneidade de aspectos gramaticais são algumas das restrições levantadas pela modalidade viso-espacial, que determinam a sua diferença estrutural e funcional em relação às línguas auditivo-orais.”
Deveras, ao abordarmos as línguas de sinais, estamos a referir-nos à língua materna/natural de uma comunidade de surdos, isto é, uma língua de produção manuo-motora e de recepção visual, com vocabulário e gramática próprios, não dependente da língua oral, usada pela comunidade surda e alguns ouvintes, tais como parentes de surdos, intérpretes, professores e outros.
Efectivamente, nas diversas línguas de sinais também se verificam as características clássicas das línguas orais:
Comunidade: As línguas orais têm uma comunidade que as adquirem, como língua materna, cujo desenvolvimento se faz através de uma comunidade de origem, passando pela família, a escola e as associações. Todas as línguas orais têm variações linguísticas. Todas as línguas gestuais possuem estas mesmas características.
Sistema linguístico: As línguas orais são sistemas regidos por regras. O mesmo acontece com as línguas de sinais, conforme referenciado por Stokoe (1960:V8).
Produtividade: As línguas orais possuem a características da produtividade e da recursividade, sendo possível aos seus falantes nativos produzirem e compreenderem um número infinito de enunciados, mesmo que estes nunca tenham sido produzidos antes. Acontece o mesmo com as línguas de sinais, sendo encontradas a criatividade e produtividade nas produções, por exemplo, da LGA (Língua Gestual Angolana), pelos seus gestuantes nativos, isto é, os surdos angolanos, parecendo não haver limite criativo.
Aspectos contrastivos: As línguas orais possuem aspectos contrastivos, isto é, as unidades fonológicas do sistema de determinada língua estabelecem-se por oposições contrastivas, ou seja, em pares de palavras, em que a substituição de uma unidade fonológica (um fonema) por outra altera o significado da palavra (por exemplo: parra e barra). Acontece o mesmo nas línguas de sinais, sendo que em vez de unidade fonológica, muda um pequeno aspecto do gesto (por exemplo, na LGP [Língua Gestual Portuguesa]: MÉTODO e LIBERDADE).
Aquisição:A aquisição de qualquer língua oral é natural, desde que haja um ambiente propício desde nascença. Na língua gestual acontece de igual forma, não tendo o indivíduo surdo que exercer esforço para aprender uma língua de sinais, ou necessidade de qualquer preparação especial.
Funções da linguagem: As línguas orais podem ser analisadas de acordo com as suas funções. O mesmo acontece com as línguas de sinais. As funções são: a função referencial, a emotiva, a conotativa, a fática, a metalinguística, e a poética.
Processamento: Embora usando diferentes modalidades de produção e percepção, as línguas orais e de sinais são processadas na mesma área cerebral.
Kyle e Woll (2000:273) apontam algumas propriedades exclusivas das línguas de sinais, tais como: o uso de gestos simultâneos, o uso do espaço e a organização e ordem que daí resultam. Assim, como já vimos, as línguas de sinais possuem uma modalidade de produção motora (mãos, face e corpo) e uma modalidade de percepção visual.
Embora existam aspectos universais, pelos quais se regem todas as línguas de sinais, a comunicação gestual dos surdos não é universal. As línguas de sinais, assim como as orais, pertencem às comunidades onde são usadas, apresentando diferenças consideráveis entre determinadas línguas.
As línguas de sinais não seguem a ordem e estrutura frásicas das línguas orais, assim o importante não é colocar um sinal atrás do outro, como se faz nas línguas orais (uma palavra após a outra). O importante em sinais é representar a informação, reconstruir o conteúdo visual da informação, pois os surdos lidam com memória visual.
A cultura surda se constróisobre a surdez e consolida sobre as conexões endosurdas e exosurdas. A surdez, encarada pelo ouvintes como deficiência, ausência do sentido audição, é para os a que possuem – os surdos – um bem cultural, aliás, é o substrato de construção de todo um complexo pelo qual os surdos se afirmam como entes portadores de uma identidade, regidos por mecanismos de memética antropodialética. Uma das maiores e mais visíveis manifestações da cultura surda é certamente a língua de sinais. Assim, a língua de sinais é tanto um produto da cultura surda como o principal portal de acesso a esta mesma cultura.
O processo dialético no ente surdo com o meio, consigo mesmoe com os outros cria mecanismos de criação comunicativa assentes na imagem, que se realizam sobre as mãos (que funcionam como órgãos de gesticulação), no rosto (que funciona como conjunto de órgãos auxiliares à realização do sinal ou gesto, e como conjunto semântico-estilístico). Os códigos linguísticos, as formas de saudação, as formas de manifestação de afecto, as formas de produção estilístico-dialógica dos enunciados, a cosmovisão ídio-surda, os grupos de interesses, etc. perfazem o complexo que designamos por CULTURA SURDA.