Comentários de Mbanza Hanza sobre «Angola – Psicopolítica do falso oprimido e do opressor» de Domingos da Cruz

Comentários de Mbanza Hanza sobre «Angola – Psicopolítica do falso oprimido e do opressor» de Domingos da Cruz

Mbanza Hanza* | Meu grande irmão, bom dia, o trecho abaixo chamou-me logo a atenção e foi a primeira coisa que retive desta preciosa análise, foi com ele que abri a minha leitura: Nos últimos tempos, cansei-me de narrar Angola e prefiro interpretar o país tendo em conta a realidade nas suas várias dimensões.” Neste particular somos dois, e, de forma melhor, eu não diária, sim, temos nos tornado intérpretes da “realidade nas suas várias dimensões” buscando “compreender os fundamentos por detrás daquilo que conseguimos visualizar.”

Agora sim, grande mano…

Li com muito prazer este rico artigo que faz uma bem conseguida análise psicopolítica da realidade angolana nos moldes que nos eternizam como pensadores e vozes de opinião. O parabenizo por isso e sobretudo por estar a escrever para O Público, são somas nesta nossa árdua estrada.

Eu ainda estou em dívida consigo no ensaio “Angola – O Papel da Oposição na Continuidade do Autoritarismo“, uma valiosa contribuição pela riqueza de conceitos expressos nos “pilares ou categorias para a manutenção do autoritarismo” e uma dinâmica discursiva muito interessante e desafiadora. Eu tinha desenhado fazer a minha contribuição ao texto em duas dimensões, a primeira seria contributiva, reforçando as visões que apresentas, fazendo uma abordagem de complementariedade de pensamento. Esta parte visava o público, podia ser publicada como minha apreciação ao texto. A outra seria privada, de irmão para irmão e actuaria numa perspectiva de desconstrução e reconstrução ou recolocação conceitual, que não visaria o público, seria uma troca privada entre nós, mas acabei não conseguindo avançar nos rascunhos, o tempo e as correrias e os acidentes tecnológicos me fizeram perder quase todo conteúdo que tinha balbuciado e hoje mesmo (16.11.2025) tive que ficar à procura do artigo para o referir neste parágrafo. Mas num xtragou, como falam aqui a tropera excluída.

Sobre o falso oprimido

Aqui nestas curtas encontrei a explicação completa do falso oprimido, as crises que lhe constroem e qual é a explicação, do ponto de vista afrikano desta crise: Entendo que uma das razões por detrás desta postura é o tenebroso vazio ético deste grupo, a treva moral na qual se encontra (…) Estas múltiplas crises são caracterizadas pelo filósofo camaronês Eboussi Boulaga como uma crise antropológica, a crise do homem e da mulher africanos. Neste caso particular, angolano/as. Que o leva à prática de uma política tosca e rudimentar, um discurso mentiroso. E Mamadou Hampate Bá responde que o Muntu considera a mentira como uma lepra social, e “aquele que falta a palavra, mata a sua pessoa civil, religiosa e oculta.”

Uma explicação melhor sobre a natureza do falso oprimido, como e porque se tornou tal, melhor do que descreve o artigo, não vejo e eu particularmente concordo com ela na totalidade. Eu mesmo em 2022 dizia que assim como temos 47 anos de má governação, também temos 47 anos de má oposição. Escrevi um artigo nesta época intitulado: “O sofrimento do povo é um negócio”, assim, a descrição detalhada que é feita em torno deste sujeito é ouro sobre azul.

Nos trechos abaixo está uma plena identificação de teia de interesses que se conjugam para que o status quo se mantenha, e é para dizer, perfect: Não se pode negar que os membros do partido-estado são os maiores beneficiários. A seguir, está a comunidade internacional, que apoia o partido-estado, sendo o seu parceiro central na implementação da extracção de recursos e implementação inquestionável da desordem neoliberal. Existem também múltiplos beneficiários internos, e parceiros instrumentais para manter o regime no poder, entre os quais figuram a Igreja, as autoridades tradicionais, os artistas, os jornalistas, entre outros.”

Uma descrição nua e crua sobre o paradoxo em que vive o nosso povo por lhe faltarem ferramentas culturais simbólicas ou mesmo referências sociais a vários níveis: O que é paradoxal é que o povo — este povo que não possui o verdadeiro status de cidadão, os oprimidos de facto — não possui as ferramentas culturais e simbólicas com vista a construir narrativas contra-hegemónicas para se defender do ataque de décadas por parte dos dois partidos de assassinos; as mentiras do maior partido da oposição, que também se apresenta como vítima; da dopamina provocada pela “religião dos likes” nas redes.”

Porém, um a parte. Felizmente, hoje, embora ainda insipiente, já podemos dizer que “o povo possui as ferramentas culturais e simbólicas” para trilhar o seu caminho ou pelo menos ser guiado para onde deve seguir e deixar essas lascas criminosas e assassinas caírem onde puderem.

Militantes e simpatizantes da UNITA.

Uma rica e elevada salva de palmas por esta que vai abaixo. Muitos parabéns: Não seria imprudente afirmar que este grupo configura uma grave ameaça por razões ideológicas, que o levam a conexões internacionais perigosas com grupos de direita e extrema-direita (…) Para agravar a trágica sorte do povo angolano, o grupo não é capaz de distinguir compromisso político de traição. O meu subsídio. Ele vai na necessidade de nós, os pensadores afrikanos, irmos redefinindo ou criando novos conceitos que expliquem realmente as coisas partindo da nossa perspectiva. De tal sorte que tudo é reduzido ao tacticismo político — sem planeamento estratégico, claro! —

Acrescentar [e sem Agenda Real, uma Agenda de Nação ou Estado que transcenda ao grupismo e nos pense para os próximos 200 anos por exemplo].”

O simulacro eleitoral é um imperativo e mediante este ritual sabem que manterão o poder através da manipulação permanente da vontade popular. O oposto só acontece se houver uma revolução que se aproveite da tensão e mobilização popular durante a simulação de eleições. Mas isto requer preparação antecipada e unidade das forças genuinamente interessadas na democracia e na política como instrumento de serviço e instância para o bem comum.”

Neste alinhamento é preciso juntar um elemento crucial. A preparação, unidade das forças e mobilização devem andar de mãos dadas com uma campanha firme de exposição e denúncia contra a cumplicidade, ingerência e boicotes do mundo ocidental nas questões políticas afrikanas, sabotando a realização da vontade soberana do povo, tal como é referido no parágrafo seguinte.

Neste contexto, o povo renunciou à sua missão histórica. É deprimente observar que os jovens e a sociedade civil acreditam que os kotas da terceira idade vão desencadear um processo libertário. Racionalmente, era expectável que os jovens assumissem uma verdadeira luta de libertação para a transformação do país. O mais risível é que aguardam por um qualquer messias da oposição cúmplice, para que lhes possa presentear com uma alternância mediante uma farsa eleitoral numa altura em que a captura e controlo das instituições são piores que no passado recente.”

Este é o Descalabro lamentável que os jovens que deviam ser o motor para a transformação, transferiram a sua missão para uma geração de softwares desatualizados, pois assim como os primeiros que temem perder as benesses matérias que durante toda a sua vida não conseguiram obter, os jovens olham o caminho do apoio aos velhos velhos como a forma mais fácil de também chegarem as mesmas benesses, ao invés de forjaram novas realidades fazendo vincar o seu tempo. O pior é que mesmo vendo cenários como o de Moçambique com a RENAMO, esta geração continua cega atrás de barcos que já naufragaram. É triste, mas facto!

Chegados aqui, reitero as minhas felicitações por este rico manjar intelectual, suficientemente forte para levar a uma profunda reflexão e despoletar uma mudança de mentalidade levando à transformação social disto decorrente. Sinto orgulho desta minha geração de resilientes que continua a construir caminhos para o nosso amanhã colectivo, melhor.

Os meus subsídios

A leitura do texto impregna-me do desejo de dar alguns subsídios na linha do que pensei fazer aquando do primeiro artigo citado lá acima. É uma pitada de complementaridade que insta a nós pensadores do continente ou da nossa Angola a que possamos ir redefinindo/reinterpretando ou criando novos conceitos que expliquem a nossa realidade partindo da nossa perspectiva.

Eis o que defendo…

Sobre os regimes, digo que a natureza dos regimes em Afrika e até os sistemas políticos em Áfrika, deve levar-nos, nós os intelectuais/pensadores do continente, a que vamos redefinindo/reinterpretando ou criando novos conceitos que expliquem a realidade partindo da nossa perspectiva; não só por sermos afrikanos, mas sobretudo, por não experimentarmos as coisas na mesma dimensão entre o opressor e o oprimido (falo do opressor original). Explico-me, tomemos a questão da escravidão e do tráfico de escravos por exemplo. Por que o tráfico de escravos e não a Resistência à Escravidão é conteúdo seminal no ensino da história nas escolas afrikanas?

A resposta que encontrei me mostra que o tráfico de escravos não tem o mesmo significado para nós e para os colonizadores. Para eles, o tráfico de escravos foi um activo, um grande feito que contribuiu grandemente para a transformação da Europa no que ela é hoje, a potência planetária. O tráfico e a escravidão permitiram aos europeus explorar e acessarem fontes e recursos de vária ordem para a sua emancipação, logo, ela vale matéria de capa. É um ganho e precisa de ser ensinado com orgulho nas escolas. Mas e para nós afrikanos? Definitivamente que não, o tráfico descontinuou a nossa história, o nosso desenvolvimento e a nossa afirmação no mundo, logo ele não foi bom para nós e não pode estar nos livros, a menos que seja a Resistência à Escravidão, isso sim é o que abona para nós e conta a história a partir da nossa perspectiva, uma vez que esta história deve contribuir para elevar a nossa auto-estima, dando-nos confiança de que se vencemos lutas no passado mesmo em grandes adversidades, hoje podemos também faze-lo. Mas se o sistema de ensino é pensado pelo colonizador e se ele é a autoridade à qual o nosso pensar académico toma como vértice, iremos assumir uma herança que nos foi desastrosa nos mesmos moldes que o colonizador a conta e acabaremos reproduzindo a nossa derrocada nos termos do opressor que a tomou como vitória para ele.

Parlamento Angolano. (Foto, AMPE ROGERIO / AFP).

O mesmo se aplica aos demais conceitos como democracia, ditadura e autoritarismo. Tomemos o MPLA como exemplo, e nos questionemos: quando foi que este governo conseguiu ditar o que quer que seja para a Europa ou para um único país ocidental? Quando é que o MPLA ao longo de toda sua existência como poder foi autoritário para com o mundo ocidental impondo-se ou impondo-lhes coisas? Agora vamos inverter a questão, quando é que o mundo ocidental ou pelo menos um país europeu ditou algo para Angola/MPLA ou impôs o que quer que seja ao longo de toda a existência do MPLA como poder?

As respostas para o caso ocidental serão: várias vezes, aliás, até o preço das nossas exportações é ditado por eles sob a batuta do mercado internacional. Mas como este mercado dita o preço do cacau, mas não dita o preço do chocolate? Como ele dita o preço do barril do crude, mas o litro de gasolina faz o seu preço? E depois o ditador é com justeza o MPLA? Ou alguém está a fazer jogo de palavras? Eu não consigo entender.

As respostas para o caso MPLA nos mostram que o MPLA é tão dócil, subserviente e obediente até ao país mais na cauda de importância entre os países do mundo ocidental. Logo apodá-los de autoritários é de certa forma fazermos passar uma falácia construída pelas potências dominadoras cuja intenção é nos distrair para que não percebamos o verdadeiro problema e o ataquemos com toda força e furor. Eles agem inteligentemente para que não vejamos o verdadeiro ditador, o verdadeiro autoritário, antidemocrata e o actuemos.

No último texto que publiquei na minha página eu classifiquei o MPLA como uma “Concessionária Política” e pegando a tua deixa, eu acrescentaria “Autoritária para Ser.” Ou seja, o MPLA é uma Concessionária Política Autoritária para Ser. O MPLA precisa de ser autoritário para nós e nunca o será para o mundo ocidental, para fazer vincar o seu papel de concessionária política. Dito de outra forma, é a condição de concessionária que lhe obriga a ser autoritário e não que o MPLA seja autoritário por essência, uma vez que, honestamente falando, o MPLA nem essência sequer tem, por isso eu me nego a considerá-lo um regime. Um sistema que mal caiu o muro de Berlim trocou de roupagem e hoje não filtra nada, qualquer coisa que se venda no Mundo ocidental, eles adoptam e implementam. Não têm valores genuínos nenhuns, etc. Um ente assim não tem essência e sem essência as adjetivações são meras distrações que o espaço político-académico internacional lança para desviar o nosso foco do verdadeiro problema, que sabe-se bem quem é o epicentro.

Assim sendo, cabe a nós pensadores afrikanos, na minha maneira de ver, redesenharmos a narrativa, reescrevermos a história para que ajudemos o nosso povo primeiro a entender o verdadeiro problema e depois a se conjugar para o combater, ao invés de sempre partirmos das premissas, muitas vezes enganosas e falaciosas que eles estabelecem, para nos definirmos ou interpretarmos a nossa realidade.

É este o subsídio que quero deixar.

Um forte abraço, meu irmão.

Para ler o artigo comentado, pode clicar neste link: https://www.publico.pt/2025/11/02/mundo/noticia/angola-psicopolitica-falso-oprimido-opressor-2152811

*O Grande Elefante, 16 de Novembro de 2025.

 

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