DIREITO À MANIFESTAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO ANGOLANO

DIREITO À MANIFESTAÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO ANGOLANO

Estamos num Estado onde não se cumpre as leis; (…), com agentes policiais sem conhecimento das normas para com os cidadãos, mas que servem os interesses do partido-Estado

Agostinho Quimbanda (AQ) – Que comentário pode tecer em relação ao tema do direito à manifestação?

Carlos Luís Xavier (CX) – Como é sabido, as pessoas têm necessidades vitais e uma delas é a necessidade de se expressar livremente. Esta é uma perspectiva que foi acolhida pela legislação angolana, numa primeira fase, através da Lei Constitucional de 1985, com as suas variadíssimas limitações. Posteriormente, a Lei Constitucional de 1991 e, depois, a Constituição da República de 2010. Aceitamos que o legislador constituinte reconheceu esta faculdade natural do ser humano, de poder se manifestar livremente. É um direito cívico consagrado.

AQ – Há quem diga que a Constituição Angolana reflecte uma cópia da Constituição Portuguesa. Qual é o seu entendimento sobre o teor do artigo do direito à manifestação?

CX – Sim, em parte, herdamos da ciência portuguesa e eles herdaram do conhecimento do império grego. Pela colonização, trouxeram aqui uma realidade do direito escrito, recebemos o direito positivo que constitui uma herança para os angolanos. Entre mentes, o direito português uma fonte de inspiração normativa, tal como também, o direito português é uma emanação do direito romano. Em parte, porque o homem, enquanto homem, é um ser falante, pelo que não podia ser de outra natureza, Angola consagrar também este elemento.

AQ – Olhando a Constituição da República de Angola, documento magno, o número 1 do Artigo 47º, refere que “é garantida a todos os cidadãos a liberdade de reunião e de manifestação pacífica e sem armas, sem necessidade de qualquer autorização e nos termos da lei”. O número 2, refere que “as reuniões e manifestações em lugares públicos carecem de prévia comunicação à autoridade competente”. Que análise nos oferece?

CX – Penso que o constituinte terá caminhado bem, ao legislar nesses termos, porque o ser o ser humano é, eminentemente, um ser falante. Daí a necessidade que se permitisse que se pudesse expressar, sem ofender o outro. Diz o princípio latino, que advém do direito natural – traduzido em português – “nenhuma norma deve contrariar a natureza do homem”. De acordo com o nosso direito consuetudinário, o direito costumeiro, há um ditado kimbundo que, traduzido para português, diz: “se te baterem, chora; se de ti roubarem, reclama”. Diante de um problema, o individuo tem de exteriorizar. Se alguém lhe bater, tem de chorar. Se alguém o roubar, tem de reclamar. É um gesto natural de terapia humana. Se não conseguir satisfazer estes impulsos natural, obviamente as coisas não poderão caminhar bem. O legislador constituinte terá, assim, interpretado a natureza do ser humano e consagrou o direito à manifestação, o que faz parte dos direitos da primeira geração.

AQ – Sabemos que tem desempenhado um papel de advocacia pelos jovens que são detidos por participarem das manifestações. Pode nos contar alguns dos casos mais marcantes nessa experiência de advocacia?

CX – Infelizmente, as recordações não são boas. As pessoas simplesmente resolvem exercer o seu direito de cidadania e acabam molestadas, presas, etc. Um dos casos que me mais marcou foi na altura da vinda do Sr. Bornito de Sousa, quando desempenhava o cargo de Vice-Presidente. Determinados jovens levantaram-se para fazer uma reclamação e foi apanhado um jovem, que nem participava da manifestação! Era um estudante que, infelizmente, foi condenado a três meses de prisão. Foi chocante, mas, felizmente, depois do recurso no Tribunal Supremo, foram todos inocentados. Outro caso, que não me recordo a data, foi quando o Presidente João Gonçalves Lourenço veio a Malanje e jovens, simplesmente por serem activistas, foram apanhados nas suas casas e levados para locais distantes e incertos. Ainda outro caso, diz respeito aos jovens que, no bairro carreira de tiro, queriam reunir-se para debaterem uma temática. Foram apanhados, levados à prisão, ameaçados de morte pela Polícia de Investigação Criminal e foram barbaramente espancados. Até custa acreditar que estamos num Estado cujo a Constituição consagra como sendo um Estado Democrático e de Direito.

AQ – Quer mencionar alguns nomes de jovens que se sentiram lesados do direito à integridade física?

CX– São vários jovens, mas posso referir o Jessi Lourenço, o Arismendes, Manu Moma, Nkrumah Pinto.

 AQ – Ainda sobre integridade física, no número 1, do artigo 36º da Constituição da República de Angola, podemos ler que “todo cidadão tem direito a liberdade física e segurança, a segurança individual”. Por outro lado, o número 2, sublinha que “ninguém pode ser privado da liberdade, expecto nos casos privados pela constituição e pela lei” e, no número 3, salienta-se que “o direito a liberdade física e a segurança individual envolve ainda: a) o direito de não ser sujeito a quaisquer formas de violência por entidades públicas e privadas; b) o direito de não ser torturado nem tratado ou punido de maneira cruel, desumana ou degradante”. Qual é a sua leitura, relacionando este artigo com a norma do artigo 47º?

CX– Infelizmente, estamos num Estado onde não se cumpre as leis. Temos um Estado autoritário. Os regimes com características comunistas não respeitam as leis. Estamos, além disso, perante agentes policiais que não têm formação para o conhecimento das normas, porque o governo angolano criou-os para servir os seus interesses. Isso faz parte do ADN dos Estados com vocação comunista, não respeitam as leis, tão pouco os Direitos Humanos. Assim sendo, apesar dos inúmeros poderes do Presidente da República, nós temos uma boa Constituição. Evoluímos sobre as liberdades fundamentais, mas pecamos no seu cumprimento.

AQ – Neste ano, em casos de manifestação, terá notado a má actuação das autoridades administrativas e policiais que viola as normas jurídicas?

Foto: OI.

CX – Todos os dias se registam a violação das normas. Por exemplo, na sexta-feira, 5 de agosto, o partido UNITA – apesar de estar em campanha eleitoral – queria realizar uma manifestação e as autoridades policiais proibiram! Com advertências de consequências ameaçadoras. O partido, temendo que o país descarrile numa situação pouco abonatória, vai ser visível o descontentamento no rosto dos cidadãos sobre a governação. Se a polícia quisesse descarregar uma violência, provavelmente entraríamos numa situação incontrolável. Actuam desta forma, com orientações das forças policiais – instrumentalizados pelas autoridades administrativas. Isto fica evidente quando a polícia exibe o despacho do governador com as suas proibições – para conservarem o poder, no intuito de passarem a imagem à comunidade nacional e internacional de que o poder não está a ser contestado. No fim de contas, o principal violador das normas em Angola, é o governo.

AQ – Tem outros casos de manifestações da sociedade civil deste ano que queira referir?

CX – Sim, uma delas ocorreu no município de Cacuso, promovida pelo jovem activista Hamilton Neto. A senhora administradora, Joana Tomás, tendia impedir, orientando a polícia. Além desta manifestação, tem se realizado também nos municípios de Kalandula, Kangandala e, timidamente, em Kaculama.

AQ – Dizia-nos que nós não estamos mal em termos legislativo-constitucional. E perante a violação dos direitos consagrados, como é que o cidadão deve reagir?

CX – No primeiro momento seriam os tribunais, tendo em atenção o princípio pelo qual “a tutela jurisdicional efectiva pertence ao Estado, que é exercida pelos tribunais”, mas, como se sabe, os tribunais angolanos também estão politizados. Assim, dificilmente sairão decisões que os penalizam. No segundo plano, é o recurso à acção popular, manifestando-se de várias formas. Na terceira instância, seria a responsabilização política das autoridades, por meio das eleições.

AQ – Enquanto secretário político, o senhor acredita neste processo eleitoral? Confia no papel da Comissão Nacional Eleitoral?

CX – Não estou confiante neste processo, pelo que, se chama à atenção das autoridades angolanas para que se cumpra com a lei e façam deste, um processo exemplar. Estive com um Padre, recentemente, e disse-me que o nome do falecido Bispo Dom Benedito Roberto ainda consta do ficheiro eleitoral. Isto é uma vergonha e indica o quanto o processo está viciado, à partida. Mas, os cidadãos são soberanos. Têm de recorrer ao poder ilimitado que dispõe, apesar de que não acredito na perspectiva eleitoral face aos vícios, mas não temos uma alternativa. Outra seria levar Angola ao caos e é desaconselhável. Mesmo assim, tenho fé que, desta vez o cidadão não deixará o seu poder em vão. Há muitos, até apartidários, que tencionam observar todo o processo eleitoral. Alguns, após o voto pretendem continuar no local para controlarem: esta tendência cívica contínua serve para inibir a CNE de furtar os votos, sob orientação do MPLA.

AQ – A Igreja Católica, por meio da CEAST, criou grupos na perspectiva de observar o processo e foi condicionada. Qual é o seu olhar?

 CX – Aqui está em causa a verdade eleitoral e, temos um ditado que sublinha “quem não deve, não teme”. Quem está temer, é porque deve, mas deixa-me razoavelmente calmo porque a CEAST não foi completamente removida da sua pretensão. Na voz do seu Pastor, o Arcebispo do Lubango, afirmou que, apesar dos bloqueios para se fiscalizar o processo eleitoral, vão fazê-lo na mesma porque a lei eleitoral diz que, após as operações eleitorais, as actas das mesas das assembleias de voto deverão ser afixadas para o conhecimento público. Assim, pode-se comunicar à CEAST, por meio de fotografias que dizem respeito aos resultados eleitorais.

AQ – Tem algum elemento que queira sublinhar?

CX – Encorajo toda gente que pugna pelo bem. Como dizia Robert Baden Powell, “deixe o mundo um pouco melhor do que encontrou”. Assim, como vocês, do Observatório da Imprensa, e outros do bem, procurem deixar um pouco melhor o mundo, será um legado positivo para o país.

AQ – O nosso muito obrigado.

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