Entre os recursos naturais, a guerra e a COVID-19 em Cabo Delgado

Entre os recursos naturais, a guerra e a COVID-19 em Cabo Delgado

António Bai Sitoe Júnior │Depois da descoberta dos recursos naturais na província de Cabo Delgado, vários fenómenos conjugaram para a transformação da paisagem política, social e económica da província, principalmente quando se olha para os distritos e aldeias. A guerra, os desastres e a pandemia da COVID-19, simplesmente agudizaram os problemas que a província enfrentava no âmbito da educação escolar.

Importa referir que antes da guerra e da pandemia da COVID-19, a hipótese geral que pairava no seio social local, fomentada pelos líderes políticos, era de que com o início da exploração dos recursos naturais pelas companhias estrangeiras, haveria um desenvolvimento naquela região, o que significaria na mudança do stablisment em vários distritos bastante desfavorecidos. Entretanto, depois da instalação das companhias, gerou-se vários constrangimentos, dentre os quais, o impacto sobre os rendimentos da população, que comprometia as famílias de pescadores e artesanais; problemas de reassentamento populacional; frustração de expectativas e manifestações de conflito; sentimento de discriminação e manifestação de conflitos e a violência das forças de segurança e violação de direitos humanos (Maquenzi e Feijó, 2019). Neste dilema, o grupo de insurgentes localmente conhecidos como os “Al-shabaab”, em sintonia com os constrangimentos políticos, sociais e económicos vividos em Cabo Delgado, precipitaram a queda do discurso propagado pelos líderes políticos, principalmente quando se observa as acções destes nos distritos e nas aldeias da província. Caracterizadas pelas mortes brutas de pessoas e pela destruição de bens públicos/privados e das residências dos locais. Importa referir que estas acções ocorrem num cenário em que algumas habitações, estavam no processo de reconstrução depois das destruições causadas pelo ciclone Kenneth, ocorrido no primeiro semestre de 2019.

Ademais, a pandemia da COVID-19 foi o golpe pela culatra, que obrigou milhares de jovens e crianças, depois do decretado do Estado de Emergência a assistir as aulas a partir de casa, através da internet, televisão e da rádio, numa paisagem em que a televisão não é um instrumento em posse da maioria que vive nas aldeias e com falta de corrente elétrica e recursos para adquirir uma.

Em meio uma miragem que expressava o desenvolvimento na província de Cabo Delgado, a questão de base do presente Eco de Transformação Social, reside nos seguintes enunciados: face aos desafios que a província de Cabo Delgado apresenta ligados ao desenvolvimento, guerra e ensino a partir de casa devido a pandemia da COVID-19, haveriam condições para o sucesso escolar nesta província? De que forma estes fenómenos gerariam a infertilidade escolar nesta região de Moçambique?

 Os insurgentes e a destruição das escolas

A primeira incursão dos insurgentes no tecido social e político de Cabo Delgado, deu-se em 2017, com a invasão da vila de Mocímboa da Praia na madrugada do dia 05 de outubro, tendo como principal alvo o comando distrital da polícia. Depois deste ataque, os insurgentes afectaram mais localidades da província, chegando a um total de 9 distritos dos 17 existentes. Nestes ataques, citam-se os mais violentes que ocorreram á 23 e 24 de Março de 2020 no distrito de Mocímboa da Praia e Quissanga, em que os insurgentes além de atacar os Postos de Comando Policial e uma base militar no primeiro caso, tomaram os distritos por um período de 24 horas, no entanto sem causar mortes de civis.

De acordo com o Centro para Democracia e Desenvolvimento (CDD, 2020), o número de pessoas prejudicadas pelos insurgentes nos distritos mais afectados, nomeadamente Macomia, Quissanga e Mocímboa da Praia, correspondem a 32.126 famílias e a maioria viu as suas casas queimadas pelos atacantes.

Os ataques a estes distritos e aos demais, culminou com a destruição de várias infraestruturas escolares, que nas contas do governo chegam a somar 76 infraestruturas, entre as quais, o Instituto Agrário de Bilibiza, gerido pela Fundação Aga Khan (Ibidem), obrigrando o encerramento das actividades nestas instituições. Por outro lado, os ataques dos insurgentes forçou a retirada de cerca de 60 mil pessoas das suas terras e locais de residência, (O País, 2020). Estas mudanças afectaram o acesso escolar de muitos jovens e de mais de 30 mil crianças, que tiveram que se deslocar com os seus familiares para as zonas consideradas seguras (RFI, 2020).

A Gestão do Ensino no meio á insurgência

O ano lectivo de 2020 arrancou com algumas escolas fechadas devido aos ataques dos insurgentes. Nestes trâmites, como solução o governo na pessoa da porta-voz do Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano (MINEDH), Gina Guibunda, garantia a reinserção dos alunos na rede de ensino da região. Através da improvisação de salas em zonas consideradas seguras para acolher os alunos deslocados (DW, 2020). No entanto, de acordo com o Centro para Democracia e Desenvolvimento (2020), a afirmação do Governo não corresponde à verdade, para esta organização, Milhares de crianças continuam sem estudar e centenas de professores que conseguiram fugir para zonas seguras continuam a aguardar pelas orientações das autoridades.

Continuamente, para os alunos que tiveram a oportunidade de se deslocar para as zonas consideradas seguras e ter o acesso escolar, enfrentaram constrangimentos ligados aos atrasos na distribuição do material devido à insegurança que se vive na província, e as fortes chuvas que destruíram a ponte sobre o rio Montepuez, que liga vários distritos a norte da província, obrigando que o transporte fosse feito via fluvial. (DW, 2020)

Todavia, apesar das aulas terrem iniciado nos locais considerados seguros, a incerteza destas florescerem na região torna-se cada vez maior, considerando as incursões dos insurgentes que estão cada vez mais próximas da cidade, ao caso da Cidade de Pemba que faz fronteira com o distrito de Quissanga brutalmente atacada e sequestrada pelos insurgentes á 23 de Março, reduzindo a distância deste com Pemba a uns 120 quilômetros de distância.

O que agrava a incerteza da fertilidade do solo de Cabo Delgado para o sucesso da educação escolar, é a experiência vivida no final do ano de 2018, em que os alunos da quinta classe de uma escola primária de um dos distritos falharam os exames finais porque tinham fugido de casa com as suas famílias, devido à acção dos insurgentes. (Notícias, 2018).

Por outro lado, a experiência ainda ensina que os insurgentes tendem a cumprir as suas promessas, sempre voltam aos locais atacados e tendem a alastrar o seu movimento para as localidades mais urbanas. O que tira a garantia de que as zonas consideradas seguras hoje, não sejam por muito tempo consideradas como tais.

Como um grupo que tem reivindicado publicamente, a implantação da lei islâmica em Moçambique (Chichava, 2020) e que teria como base das suas acções o alcorão, existiam fortes motivos para se afirmar que enquanto durar o mês do Ramadan e a lua não se afogar, a paz pudesse vincar nos distritos de Cabo Delgado. No entanto, a informação tendem a mostrar segundo Carta de Moçambique (2020), que os ataques continuam mesmo no mês santo. Faltando dez dias para o fim de Ramadan, os insurgentes atacaram as aldeias de Wasse e Miangalewa, nos distritos de Mocímboa da Praia e Muidumbe, respectivamente. Como um grupo com discurso que intenta a instalação do Estado islâmico na região, estes ataques elaborados no mês de Ramadan questionam os reais objetivos e bases destes actores da guerra.

A pandemia e o ensino através da televisão e a rádio

O novo coronavírus ou simplesmente covid-19, é uma pandemia que começou em Wuhan, Cidade da República Popular da China nos finais de 2019, e alastrou-se pelo mundo destruindo muitas vidas humanas principalmente na Itália, Espanha, Estados Unidos da América, Reino Unido entre outros países, fortemente os da Europa. Esta pandemia forcou a mudança do estilo de vida da população global, ao obrigar os Órgãos da Soberania dos Estados a decretar Estados de Emergências que mexiam com variais agendas de desenvolvimento, principalmente a de educação.

No caso de Moçambique, decretar o Estado de Emergência, implicou como em muitos Estados no encerramento das escolas e outros sectores. No entanto, a que ressalvar que esta medida foi tomada num espaço-tempo que não permitiu as escolas assim como os professores elaborarem um plano alternativo para a continuação das aulas, o qual para o caso do ensino superior fora aplicado através das aulas on-line e no ensino geral e médio não técnico através da televisão e mais tarde em sintonia com a rádio. Esta decisão ocorre num contexto em que a província de Cabo Delgado é assolada pelos insurgentes, para além da falta dos recursos necessários, como casa, a base do Estado de Emergência para ter as aulas através da televisão, a província tornava-se o epicentro da pandemia da COVID-19.

foto/rmc

Muitas crianças e jovens deslocados das suas aldeias para outras regiões por causa da guerra não tem acesso à energia elétrica para acompanhar as aulas televisivas ou pela rádio. Outrossim, para os casos em que se tem apenas a rádio, a assimilação das aulas é constrangida por falta do acesso visual do que é explicado na televisão.

Para o caso dos jovens do ensino superior o prejuízo vem da péssima qualidade da internet e pelas tarifas das recarregas aplicadas pelas empresas de telefonia móvel, que não são generosas para os jovens que estão nas aldeias desfavorecidas.

Com uma população predominante rural e sem energia elétrica, o método de fichas de trabalhos entregues aos encarregados pelos professores, como um dos métodos adoptados pelas escolas nacionais, no caso da província de Cabo Delgado seria dificultado por vários constrangimentos de ordem social, económica e religiosa, que de acordo com Projecto EDUCA (sd) são justificados pela falta de comunicação, falta de tempo por parte dos professores, falta de interesse dos pais, e a falta de recursos; uma relação com as estruturas do bairro reduzidas a pedidos de ajuda da escola para resolver situações pontuais; a escola é considerada uma questão secundária, além disso, numa região de carisma islâmico, o sistema de doutrina religiosa não corresponde ao da escola porque esta tem um calendário cristão, neste sentido, a comunidade não legitima a escola, os pais consideram a escola como um desperdício de tempo, primeiro porque se perde mão-de-obra, e segundo porque identifica-se nas pescas uma realidade segura para a subsistência da família presente e futuro, comparado com uma escola que fornece ferramentas “desnecessárias” para a sobrevivência, uma vez que a linguagem utilizada na escola – o Português – não se adequa a ideologia de vida destas comunidades piscatórias.

Como tornaríamos Cabo Delgado uma terra fértil?

Diante de vários dilemas que condicionam o futuro da educação escolar em Cabo Delgado, é importante arrolar algumas recomendações que derivam das observações e leituras para a possível estabilidade do ensino na província. É igualmente importante reter que as recomendações observam o sucesso escolar na província, principalmente com o fim da insurgência sem descartar a pandemia da COVID-19. Não obstante refere-se que:

  1. O governo deveria estimular os militares logisticamente, ao nível de alimentação, material bélico e tecnológico para acabarem com a insurgência;
  2. O Presidente deveria ser mais interventivo na questão da insurgência e dar o suporte público como forma de evitar o sentimento de abandono partilhado pelos militares depois dos ataques violentos ocorridos em Mocímboa da Praia e Quissanga, não tendo se pronunciado atempadamente.
  3. Intensificar a presença do Estado nas zonas mais recônditas dos distritos como forma de garantir a segurança, representação e comunicação com os locais, prestando auxilio as instituições locais principalmente as religiosas, estimulando-as a aderir o ensino escolar convencional;
  4. Monitorar a chegada de jovens dos países vizinhos com fortes incidência a grupos radicais que se tornam a mão de obra da guerra dos insurgentes.
  5. Descentralizar ainda mais a estrutura governativa como forma de manter o contacto com os jovens locais e ouvir as suas preocupações.
  6. Investir na construção das escolas primarias, secundarias e principalmente as técnicas no meio rural e urbano que até então incluindo a atacada pelos insurgentes, somam um total de 7 em toda província;
  7. Montar uma rede elétrica nos distritos e nas aldeias com tarifas de pagamento baixos observando-se o mesmo em todas as províncias como um sistema que permitirá os jovens estudarem e trabalharem através de outros meios como a internet e impulsionar o empreendedorismo local;
  8. Criar maiores oportunidades de emprego estabelecendo mais parcerias com as companhias estrangeiras de exploração para empregar jovens locais como forma de evitar discriminação partilhada localmente face ao tratamento diferenciado dos jovens de outras regiões com um certo grau de escolaridade, fazendo com que os jovens locais não sejam alvos de fácil recrutamento dos Al-shabaab;
  9. Mecanizar e financiar as atividades locais como a pesca, agricultura e artesanato como forma de incentivar os jovens.
  10. Ser mais comunicativo com as ONGs que actuam no local de forma a disseminarem as campanhas contra a pandemia e a distribuição do material necessário para os jovens e as crianças terem acesso as aulas enquanto o período de emergência perdurar.

Referências

CARTA DE MOÇAMBIQUE. (2020). Terroristas voltam a atacar Muidumbe e Mocímboa da Praia. Disponível em: https://cartamz.com/index.php/politica/item/!-terroristas-voltam-a-atacar-muidumbe-e-mocimboa-da-praia (Acessado a 13 de Maio de 2020).

CHICHAVA, Sergio. (2020). Quem é o “inimigo” que ataca cabo delgado? Breve apresentação das hipóteses do governo moçambicano. IdeAIS 125. Maputo: IESE.

(2020). Ataques de insurgentes deixam 30 mil crianças sem aulas em Cabo Delgado. Disponível em:https://www.google.com/amp/s/amp.dw.com/pt002/ataques-de-insurgentes-deixam-30-milcrian%25C3%25A7as-sem-aulas-em-cabodelgado/a-52360379 (Acessado a 03 de Maio de 2020).

MAQUENZI, Jerry; FEIJÓ, João. (2019). Pobreza, Desigualdades e Conflitos no Norte De Cabo Delgado. Observador Rulal.

NOTÍCIAS. (2018). Insegurança em Cabo Delgado impediu alunos de fazerem exames finais. Disponível em:

https://noticias.sapo.mz/actualidade/artigos/inseguranca-em-cabo-delgado-impediu-alunos-de-fazerem-exames-finais (Acessado a 03 de Maio de 2020).

NOTÍCIAS (2020). Ataques: Destruição elevada em várias aldeias, comunidades em fuga, dizem testemunhos. Disponível em: https://noticias.sapo.mz/actualidade/artigo /ataques-destruicao-elevada-em-variasaldeias-comunidades-em-fuga-dizem testemunhos (Acessado a 03 de Maio de 2020).

PROJECTO EDUCA. (Sd). Pemba Moçambique. Reggio Emilia: Educa International Secretariat. Disponível em:https://educaresearch.eu/file/2013/02assessment_PB_PT_Def.pdf#page13 (Acessado a 03 de Maio de 2020).

TINGA, João. (2020). Ataques Armados Em Cabo Delgado. A guerra silenciosa e silenciada que deixa milhares de pessoas desesperadas. Maputo: CDD. Disponível em: https://cddmoz.us4.list-manage.com/track/click?u=963f7d1fef14fe1990f76cc3f&id=bfea85b6be&=9bae46e879 (Acessado a 03 de Maio de 2020).

RFI. (2020). Cabo Delgado: 30 mil crianças fora do sistema escolar. Disponível em: https://www.google.com/amp/s/amp.rfi.fr/pt/mocambique/20200213-cabo-delgado-30-mil-criancas-fora-do-sistema-escolar-alunos-educacao (Acessado a 03 de Maio de 2020).

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