Liberdade de imprensa: ética, política e cidadania

Liberdade de imprensa: ética, política e cidadania

O direito de se expressar não isenta o carácter ético e moral que devem ser observados no momento em que os indivíduos manifestam as suas opiniões…

Muata Sebastião│Reflectir sobre à liberdade de imprensa, significa olhar para uma das maiores conquistas da democracia moderna, facto que torna fácil a compreensão do papel que a imprensa exerce no campo político, social, económico religioso, etc., incutindo nos indivíduos uma consciência, uma cultura e uma forma de agir e pensar.

A imprensa ou a difusão da imprensa ocorre apenas em meados do século XV e, carregado de um valor social, possibilitou o surgimento de novos cenários de comunicação, fazendo com que os indivíduos assumissem cada vez mais o papel de produtores da midia, com maior destaque num contexto em que é inevitável a “invasão tecnológica” iniciada a partir do século XIX com o surgimento de meios, tais como: a fotografia (1814), o telefone (1877), o cinema (1895), o rádio (1909), além da televisão e outros meios que, ao longo dos anos, têm se incorporado na estrutura das sociedades.

Falar de imprensa ou liberdade de imprensa significa também olhar para uma questão fundamental, a chamada “gestão de informação”, não enquanto controlo, mas enquanto vontade natural que os indivíduos possuem para se comunicarem entre si, tornando pública esta vontade.

Por esta via, a UNESCO entende que “a informação é um bem público e social”, exercido através de qualquer forma de expressão e que ninguém deve ver-se no direito de proibir que alguém exprima esta vontade, que é também um direito, tal como nota o artigo 19º da DUDH [Declaração Universal dos Direitos Humanos], segundo o qual, “todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, este direito implica a liberdade de manter as suas próprias opiniões sem interferência e de procurar, receber e difundir informações e ideias por qualquer meio de expressão independentemente das fronteiras”.

Em virtude do que nos apraz reflectir, é nosso entendimento que a garantia da liberdade de imprensa só é possível quando existe o direito à informação, essa que é essencialmente o resultado da diferença entre objectividade jornalística e o acesso que as pessoas têm à verdade factual.

Pois, compreender essa diferença é importante uma vez que, sendo a notícia resultado de recortes, reconstruções dos factos, o que não significa dizer que elas (as notícias), não sejam confiáveis, este processo permite garantir certa qualidade na informação que é veiculada, até porque a notícia exerce forte influência na forma como os cidadãos opinam. Em outras palavras, a qualidade da opinião está directamente relacionada à qualidade da informação que o cidadão recebe.

“(…) a notícia exerce forte influência na forma como os cidadãos opinam”

Por isso, é e sempre será fundamental a necessidade da não manipulação e /ou distorção da imprensa de modo a salvaguardar a formação da opinião do público e a sua capacidade de julgamento, pois que isso favorece a construção e/ou o aprimoramento do estado democrático e de direito, na medida em que a imprensa joga um papel crucial, auxiliando no processo de reestruturação da esfera pública, que além de se encarregar da publicação de notícias, assume também a função de conduzir a formação da opinião pública que de acordo com Habermas (1984, p. 87), “somente isso permitirá diferenciar opinião pública da propaganda”.

Em Angola, a liberdade de imprensa tem sido quase sempre condicionada a um jogo de interesses económicos, privilegiando apenas as elites que, na sua maioria, são os donos dos grandes meios de comunicação social do país que, fazendo valer seu poder aquisitivo usam-na para silenciar vozes, possibilitando em alguns casos a alienação.

Como sabemos, restringir a circulação e difusão de ideias é um direito retirado às pessoas, não apenas nos regimes considerados totalitários, embora nestes ocorra com maior frequência, mas com muita pena ocorre também nos regimes considerados democráticos que, em nome da democracia, algumas lideranças, muitas destas em África, tornaram a liberdade no apanágio do grupo dominante e por via deste criam grupos de pessoas que vão, como dizia Foucault, “fazendo a racionalização da gestão do indivíduo” tornando a imprensa num “instrumento marginal”.

No passado recente, fazendo uma releitura do que foi Angola nos últimos 38 anos, assistimos, não poucas vezes, indivíduos que foram marginalizados por exercerem o direito de opinar, marginalidade praticada pela imprensa, que não poucas vezes, foi optando pelo «jornalismo» do pré-julgamento (com acusações sem provas e sem que os factos fossem apurados de forma responsável e que acabavam dando a impressão de notícia encomendada).

Durante esses anos, a liberdade de Imprensa era vista como “uma ameaça ao regime” que, agindo além do que a CRA [Constituição da República de Angola] diz, no artigo nº 40, via-se o regime no “direito” de determinar quem, onde, como e quando alguém pode falar, uma medida que justificou, na época, a intensidade das repressões, prisões e controlo de posições contrárias.

foto/rmc

Fazendo uma pequena digressão, podemos mais uma vez lembrar Habermas (2003a., p. 4) que, na sua abordagem sobre a tolerância religiosa, dá-nos alguns subsídios que entendemos serem valiosos para a nossa reflexão. O autor em questão ao tratar sobre a tolerância religiosa admite a necessidade da existência de um acordo normativo, de um reconhecimento recíproco dos cidadãos como livres e iguais para que se possa garantir a dimensão da divergência de opiniões, ou seja, somente quando “vemos” o outro é que podemos dele discordar, sendo então um requisito imprescindível de uma sociedade multicultural, onde os indivíduos possuem divergentes auto-compreensões cognitivas, a atribuição recíproca de direitos.

 O direito de comunicar, entendido como liberdade de opinião e de expressão e enquanto um direito humano, deve ser ampliado para além de um direito aos “donos” das grandes midias e/ou empresas de comunicação social. Este direito corresponde ao exercício da cidadania, sendo justo que seja estendido a todos os cidadãos e suas organizações representativas.

Havendo liberdade de imprensa, as pessoas devem sentir-se no direito de expressarem e discutir ideias, políticas com o objectivo de trazer soluções que possam resultar na mudança do quadro e/ou paradigmas, limitando o abuso de poder. Mas, tudo depende da maneira como a imprensa se posiciona, além da qualidade da informação que ela passa.

Por exemplo, Arendt (1987, p. 79), defende a existência de uma ampla liberdade de expressão que, no seu entender, só é possível no mundo “visível” – no reino dos fenómenos, no espaço impessoal, que somos capazes de saber quem somos.

Esse indivíduo, dono do seu espaço, participa enquanto cidadão, produto e produtor da realidade social por meio da fala ou através de outras formas de comunicação, é um agente activo da pólis enquanto Estado, uma experiência que, segundo Aristóteles não é possível aos animais e muito menos a Deus. Daí é que, enquanto cidadão, directa ou indirectamente, o homem é também objecto da política. Por isso mesmo, é uma utopia pensar que existe “uma oposição entre o cidadão e a política”. Sendo o homem um animal político, segundo o Estagirita [Aristóteles], é no exercício da sua liberdade política que se constrói como tal, perspectiva ontológica, segundo o qual a dimensão política seria responsável pela essência humana, sendo então um dever a virtude cívica.

Em regimes autoritários, em que a imprensa é feita refém, é impossível compreender isso pois esses regimes usam a censura de informações veiculada na imprensa, censuram opiniões de pessoas singulares e /ou colectivas, vigiam locais de reuniões, de produção de ideias, infiltram-se nas associações de várias ordens, com maior destaque, nos partidos políticos e outros locais e formas que as pessoas encontram para expressarem suas opiniões.

Para a nossa realidade, embora a censura da imprensa não tenha algum fundamento legal, como acontece em outros contextos, infelizmente ainda nos deparámos com este tipo de comportamento, contrário ao que estabelece o artigo nº40 da CRA e a Lei 01/17 (lei que estabelece os princípios gerais orientadores da comunicação social e regula as formas de exercício da liberdade de imprensa).

Não poucas vezes vivenciamos situações de censura, sobretudo das actividades políticas de partidos na oposição, da Sociedade Civil, a não divulgação dos comunicados e /ou das posições políticas de certos grupos, facto que retarda em grande medida a nossa democracia que há muito não sai do estado embrionário.

Deparamo-nos ainda com a forma brutal como a Imprensa muda, sobretudo, quando se intensificam situações emergentes ou não, que obrigam as pessoas a se manifestar. Isso acontece porque a imprensa tem privilegiado o direito à livre expressão e o acesso à informação às elites e a um grupo reduzido de pessoas ligadas ao sistema. As elites, porque é deles, como já havíamos dito, o controlo dos meios de comunicação.

foto/ jornal “Público”

Infelizmente, em pleno século XXI ainda vemos gente com dificuldades no acesso à informação, isto porque a liberdade de imprensa continua sendo difícil a uma grande parcela da população. Além do pouco incentivo à leitura da parte dos angolanos, é notório também o reduzido número de leitores regulares de revistas, jornais, sobretudo os jornais diários, uma realidade que em parte desmascara a crise no acesso à informação, facto que se agudiza com a pouca expansão dos jornais públicos diários e do mau sinal da Televisão Pública de Angola, demonstrando algum descompasso com o ritmo do crescimento demográfico.

É deste entendimento que, para nós, a globalização, por um lado, contribuiu para aumentar o potencial de universalização dos meios de comunicação, por outro, resultam as desigualdades de usufruto de suas benesses. Facto que, para o nosso entendimento, está longe de ser uma realidade, sobretudo, com os outros condicionamentos e burocracias institucionais que se impõem para a criação e/ou legalização de novas cadeias de comunicação, sobretudo as comunitárias.

É certo que a imprensa joga um papel para a compreensão de questões fundamentais da nossa vida social. E dentro desta compreensão existe elementos cuja relação não pode ser deixada de lado, é a questão da relação entre a ética, a política e a cidadania. Esta relação é fundamental na medida em que nos ajuda a compreender o posicionamento da imprensa e o papel dos indivíduos enquanto agentes da cidadania activa. Pois que “não há cidadania sem civismo”, até porque a cidadania como tal pressupõe a civilidade que permite temperar a expressão brutal das paixões entre indivíduos cujos interesses se opõem.

Portanto, compreender o comportamento da imprensa é importante e também o é compreendermos o papel dos indivíduos (enquanto animais políticos), sobretudo, num momento, salvo haja algum impedimento, em que o país se prepara para o desafio autárquico, um desafio que acreditamos ser importante para a mudança do paradigma político, social e económico de Angola.

Trata-se de uma relação inegável pois que por meio dela é possível a congregação de mais meios que possibilitam o alargamento de possibilidades, que eventualmente irão favorecer que os políticos e agentes sociais (sociedade civil) se manifestem, fazendo uso dos recursos à disposição, tanto dos meios públicos quanto privados.

O direito de se expressar não isenta o carácter ético e moral que devem ser observados no momento em que os indivíduos manifestam as suas opiniões, fazendo uso dos recursos à disposição, de modo que ao se expressarem não causem medo a quem os ouve, não façam calúnias, não pratiquem injúrias ou manifestem comportamentos que minam a convivência entre às pessoas inibindo-as de serem elas mesmas.

Nesta óptica, está também a obrigação do governo preservar os direitos e/ou garantir segurança aos que se manifestam na Rádio, TV, Internet e em outros meios, protegendo-os de possíveis perigos, o que significa dizer que não pode ser o governo o primeiro a criar situações de perigo e vulnerabilidade aos fazedores de opinião.

Assim sendo, reflectir sobre a liberdade de imprensa implica darmos respostas a algumas questões fundamentais, tais como:

  • Como temos garantido os direitos às pessoas para que se possam sentir elas mesmas?
  • O que temos feito para que as nossas ideologias não interfiram no direito que cada um tem de exprimir suas ideias?
  • Como cada um tem lutado para que ninguém possa sentir-se ameaçado em meio a tanta violência?
  • Como vemos a imprensa ─ como meio de promoção ou alienação social?

Respondendo estas questões: podemos sim construir uma sociedade emancipada, que só é possível a partir de um fundamento racional que ao contribuir para a construção deste tipo de sociedade proporciona condições de realização ao ser humano moderno.

Por isso, meus amigos e minhas amigas, juventude está em nós, o poder e a força para garantir a nossa cidadania e nos sentirmos apenas nós. Pois ser cidadão significa também ter direitos civis respeitados, participar do exercício do poder, usufruir de um modo de vida digno, ter acesso ao conhecimento e poder comunicar-se através dos meios tecnológicos que a humanidade desenvolveu ao serviço de todos.

Tudo depende de nós!

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1 Comentário

  1. Sebastião João

    Grande abordagem. Está de parabéns o autor da matéria.
    Embora ainda estejamos muito distante daquilo que realmente se compreende como liberdade de imprensa, se compararmos com outras realidades, espera-se dos jornalistas e outros fazedores de opinião resiliência, que sejam mais ousados e criativos e aproveitem ao máximo todos os meios ao seu dispor de formas, a que se cumpra o ditado: ” Se Maomé não vai a montanha então a montanha vai a Maomé”.

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