Réplica: “Democracia no antigo Kôngo foi de facto uma realidade”

Réplica: “Democracia no antigo Kôngo foi de facto uma realidade”
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Ruínas da Sé Catedral de Nkulumbimbi, no Reino do Kôngo [F/rmc].

Por Patrício Batsîkama || Li com muita atenção o comentário de Nuno Álvaro sobre o meu opúsculo, e devo admitir que fiquei feliz saber que a juventude angolana esteja a apostar no saber.

A democracia no antigo Kôngo não é a minha tese. Aperfeiçoei o que já existe nas Relações de padres, comerciantes, negreiros entre século XVI e XVIII. O relato de Rui Pina (o mais antigo) já fala do sistema político semelhante aos Gregos, na Era clássica. Poderá ler isso no Códice 1910 que está na Biblioteca municipal de Florença. Lá encontram inúmeras evidências do sistema político chamado democracia. Inúmeros padres, comerciantes, negreiros, visitantes… desde 1491 até 1710. No Vaticano há uma caixa famosa sobre as correspondência do antigo Kôngo: Vat. Lat. #12.516. São correspondências de dois séculos com interessantes informações sobre o sistema democrático no antigo Kôngo. Em síntese, não me interessa discutir aqui se a democracia existiu ou não na forma que aborda Nuno Dala. Na História não se fabrica as fontes, nem especula-se nelas.

Logo no início, o autor citou Abraham Lincoln: “o governo era do povo, para o povo e pelo povo”. Verifiquei ao longo do texto que fui censurado na base desta definição lincolniana que, para um historiador/antropólogo é limitada. E para qualquer estudante de filosofia no IIº ano, aquela definição nem se verificou na Grécia. Durante o Congresso Mundial de Filosofia em 2013 eu, Patrício Batsîkama, estive na Grécia, verifiquei isso in loco com explicações confortantes. A definição lincolniana serve para os políticos, e eu ainda não faço político.

Permite-me humildemente explica-lo a democracia na Antiga Grécia, e mesmo nos Estados Unidos de Abraham Lincoln:

Grécia. Demos é um povo bem posicionado social, financeira e academicamente. Difere de Ethnos, povo campestre que, apesar das suas terras, não possuía capitais sociais, nem financeiras ou intelectuais para fazer face aos primeiros. Por último, havia laos (laikos) que era povo acolhido na Grécia, geralmente sem terras. E quando se falava de democracia era o poder dos mais poderosos. Nem sequer durou dois séculos completos Grécia. Grécia era preferida como res pública, razão pela qual Platão escreveu uma obra com esse título. Aristóteles refletiu demasiado sobre essa res pública… e não democracia da forma que foi aplicada na Grécia.

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Capa do livro em debate. [F/Nuno Dala].
E.U.A. Abraham Lincoln é um dos raros presidentes que eu gosto, não porque fez reformas e levou a escravatura ao fim, mas por outro motivo. Ele percebeu o que é o poder, e exerceu-o muito bem! Mas curiosamente, quando estudamos as maneiras como ele exerceu esse poder, ficamos espantados pela sua liderança autocrática, e não liberal como definida pela democracia moderna.

Interessa-me agora tentar fazer crítica breve sobre o que escreveu o autor do texto intitulado “Havia de facto Democracia no Reino do Kôngo?”. Entendo por crítica, a análise da razão pela forma da expressividade e informação veiculada nas premissas que compõem o argumento e nas teorias que sistematizam-nas e justificar o resultado final.

O meu arguente limitou-se numa definição da democracia moderna censurando um passado cujo suporte não é compatível. Lembrando que a França e os E.U.A. têm democracias diferentes porque são dois “espaços sociais” que as recolhem como sistema político. Nuno Dala percebeu mal a minha tese (no sentido hegeliano), a sua antítese e síntese são eristicas (não confundir com heurística). Quer dizer, raciocínios especiosos, para não dizer non sequitur. Já não volto nisso.

Achei estranho o reparo que se fez sobre a semântica kikôngo. Eu acho que faltaria intensão (e não intenção) filosófica no arguente: a Filosofia sempre deu muita importância a semântica (matéria) e a Lógica (forma). Aconselho-lhe ler Foucault quer em “Coisas e palavras” onde não há coisas nem palavras, ou ainda a “Arqueologia das palavras”, onde o suporte nocional das palavras regista as instituições no passado. Curioso ainda é que o autor tentou ver a “semântica”, mas não viu a Lógica (forma). A semântica que é a trama nocional (matéria) do símbolo/signo/código e não se pode falar de uma sem mencionar a outra, a não ser um trabalho amador.

Sobre as referencias mencionadas em relação ao poder de Mwêne Kôngo quer nas nomeações dos governadores, tal como o citou Jan Vansina, permite-me informar-lhe que este eminente professor escreveu um texto na contracapa do meu livro Lûmbu, e eu recomendo-lhe ler. Também, na sua recente obra publicado em 2004 (How Societies are born) que eu traduzi para português, ele já não assume essa postura que citastes. Afinal foi em 1979 e nesta época não havia maior acesso as documentos nos arquivos como hoje em dia. Também a nossa História foi escrita por estrangeiros. Eu sou daqueles que pensam que é possível rentabilizar os meus diplomas, não no garimpo professoral, mas buscando novos conceitos e propor o debate. O Lûmbu é uma provocação do debate.

Ao citar Torres (infelizmente não mencionaste o título do seu livro, cidade…) voltaste a cometer o mesmo erro. Já George Balandier – no seu livro Le pouvoir en scène – explicava que a teatralização do poder em África e toda a sua imaginaria tinha o seu espaço como leitmotiv para compreender a sua cosmogonia. Ki-Zerbo, logo na introdução do seu livro África negra convida-nos a descolonizar os conceitos que herdamos junto com a colonização. Com Elikia Mbokolo, na cidade do Uige em 2014, questionamos a rentabilização investigativa dos diplomados africanos.

Etnocentrismo… foi muitas vezes repetido. O reino do Kôngo foi na verdade um Estado poderoso em todos os aspectos. Temos Relatione dos padres, viajantes, negreiros que indicam que autoridades do Benguela Velha iam pagar tributo em Mbânz’a Kôngo. Os Embundu (Ambûndu) eram parte populacional deste antigo Estado Kôngo, e pagavam tributo de lealdade. Os poderosos Lûnda tinham frequentes contactos com Mbânz’a Kôngo através de Mbata (terras dos militares do Kôngo: Mazômbo). Isso é História, e há documentos dos séculos XV-XVIII (já lhe indiquei algumas fontes). No século XVII Vaticano recebia cidadão kôngo para ensinar as Humanidades.

As escavações estão em curso, e nos próximos tempos teremos o mapa das escolas que funcionavam já entre 1512-1667. Vários embaixadores kôngo na Europa dignificaram este antigo reino pela alta qualidade de ensino quer em Mbânz’a Kôngo quer no Nsoyo. Dom António Manuel Negrita (Nsaku Ne Vunda) está enterrado no Vaticano, e aconselho-lhe ler as cartas de padre Biondo, os Avissi di Roma e outros pareceres sobre ele: as exéquias dele contou com príncipes e embaixadores acreditados na Cidade Santa.

Isso é História. Não será alguma filosofia que irá mudar isso. Em relação ao etnocentrismo, eu acho que o arguente do meu humilde livro parece desconhecer a História de Angola. Não há mal nenhum que alguns Kôngo procurassem estabelecer as suas relações com Salomão ou quem quer seja. Essa discussão não é História. Trata-se de uma leitura híper-antropológica que não tem fins científicas, e lamento que o autor tenha feito referencia a isso para atacar os Bakôngo e refutar um certo etnocentrismo que no meu texto não me parece existir.

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Patrício Batsîkama. [F/rmc].
Será o antigo Kôngo uma monarquia? Essa leitura eurocêntrica de escrever a História de África já mereceu a minha resposta no primeiro capítulo do meu livro intitulado O reino do Kôngo e a sua origem meridional (2011). Ainda que classificássemos como monarquia, não vejo porque não seria uma democracia. Inglaterra é uma monarquia, mas democrática. Ou não é? Belgica também é?

Para terminar, na leitura que fiz sobre o texto de Nuno Dala, percebi-me de:

  • O meu livro foi escrito com maior simplicidade possível, nem fiz menção a uma terminologia especializada (História), e se alguém achou que a minha linguagem foi tendenciosa e distorcionista, pergunto-me a mim mesmo: o que significaria distorcionista? O que é desiderativismo? Não entendi porque se utilizou o termo impressionista.. ? Ao argumentar é preciso ter muito cuidado com a linguagem.
  • se o meu arguente não achou os elementos da democracia no meu livro, então deve ter lido a pressa: favor de (re)ler as páginas 33-35: eleições; páginas 41-52: divisão de poder; etc. Não entendeu a Lógica formal e a Linguagem: base para argumentar. Aconselho também assistir um óbito ou o alembamento kôngo para entender as reminiscências desta democracia.
  • os Diálogos de Platão (com Sócrates no epicentro) a necessidade da comunicação; com Analítica de Aristóteles aprendi a apreciação desinteressada, onde a Lógica é a única estrutura cognoscitiva. Com Sartre e Faulcoult, percebi-me que é preciso ler muito.

Na minha aldeia, lá em Kibokolo (em makela ma Zômbo, província do Uíge, nós dissemos o seguinte: “ngânga ye ngânga; mfûmu ye mfûmu”.

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2 Comentários

  1. Batsikama

    Meu caro Odi Pascoal.
    Espero que em 2016 MEDIAPRESS publicará o a edição completa do livro. Porque 2016? Simplesmente porque tenho em agenda confirmada 3 livros este ano: (1) LÓGICA NA PROFISSÃO DO HISTORIADOR ANGOLANA de 62 páginas para os meus estudantes de 2º ano de História; (2) DIÁLOGO ESTÉTICOS ANGOLANOS, de 280 páginas para os meus estudantes do 4º de História; (3) NAÇÃO, NACIONALIDADE E NACIONALISMO EM ANGOLA em dois volumen de 450 páginas cada. Este livro é a minha tese de Doutoramento.
    E, para 2016, o primeiro livro a publicar será a 2ª edição. Caso as imperativas exigirem, poderá ser este ano, porque já está pronto. O meu receio é que se o público tem dificuldade de quase 100 do LÛMBU… na sua 1ª edição, como será ler mais de 370 páginas da 2ª edição?
    Contudo, o público fica informado…

  2. Odi pascoal

    Professor. Patricio BATSIKAMA es mesmo um verdadeiro Historiador . Isto é orgulho para Angola. Os “apprentis sorciers” comme se diz em francês vão aprender à se calar quando se trata duma matéria tanta séria como a historia. Falar ou comentar sem ler é falta de honestidade intelectual. As universidades angola as têm muito a fazer.

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