Domingos da Cruz, investigador, jornalista e escritor angolano, apresentou o seu mais recente livro ‘Racismo – O machado afiado em Angola’, no dia 14 de agosto, no espaço Sr. Chiado, em Abrantes, a convite da Associação Palha de Abrantes. A obra, ainda sem lançamento oficial agendado, acusa a elite governativa angolana de ser conivente com o racismo, a quem, segundo o escritor, interessa manter o nível existente de discriminação por uma questão de poder.
Domingos da Cruz começou por afirmar algo incompreensível para os ouvintes opositores à racialização das relações humanas. “O racismo é bom! É tão bom que as pessoas continuam a ser racistas. Se não fosse bom as pessoas o abandonariam. A prática do racismo é basicamente um instrumento de poder, de manutenção de influência e de privilégios, esta é a razão porque o racismo ainda persiste”.
O escritor angolano falava sobre o seu último livro ‘Racismo – O machado afiado em Angola’ defendendo que “a bondade ou a malícia do racismo depende dos intervenientes, ou seja, é uma questão de perspectiva […] o protagonizador do racismo entende que o racismo é bom porque percebe que os seus avós tiveram vantagens por serem racistas, os seus pais por serem criminosos continuam a ter vantagens e vê nisso um elemento fundamental para manter privilégios e portanto deve continuar essa prática criminosa. O racismo é tão bom que acolhe apoio de massas a nível mundial”, diz, embora afirme não acreditar no fim da descriminação racial mas sim, na possibilidade de “reduzir consideravelmente o número de crimes”.
E o facto do debate racial ser tabu no país, é o mote para Domingos da Cruz falar sobre racismo quer em África quer na Europa e no mundo. E esse é o tema do livro que o investigador, professor e jornalista trouxe até Abrantes. A obra ‘Racismo – O machado afiado em Angola’ é o nono livro do autor que foi um dos angolanos julgados em Luanda naquele que ficou conhecido como processo dos “15+2”, envolvendo 17 activistas acusados de prepararem um golpe de Estado contra o Governo do então presidente José Eduardo dos Santos.
“O problema racial deverá constar na agenda de discussão, entre os angolanos dentro e fora de Angola. Será igualmente valioso a participação no debate de personalidades alheias à nacionalidade angolana. A questão racial tem raízes históricas fundadas sobre uma ‘memória apagada’, sobre a evangelização e sobre a colonização”, escreve Domingos da Cruz na introdução do seu livro.
Convidado pela Associação de Desenvolvimento Cultural – Palha de Abrantes, Domingos da Cruz esclareceu em Abrantes as razões sobre esta investigação onde concluiu que o silêncio sobre racismo na sociedade angolana “terá sido uma opção política” fundada na cultura política adoptada no país “na luta anticolonial e no pós-independência”.
Lembrando que o racismo “causa vítimas! Não é opinião mas um crime, e isso está nos instrumentos internacionais de defesa dos direitos humanos”, Domingos da Cruz explica que o racismo em Angola persiste em alto nível “porque há uma elite negra que celebrou um pacto informal com criminosos e essa elite os protege porque os seus interesses coincidem”.
Defende que “essa opção política inviabilizou a possibilidade de se discutir o problema. Angola é daqueles países marcados por inúmeros silêncios. Há uma opção política que inviabiliza esse debate. Apesar desse amordaçamento, o racismo não deixa de ser discutido nas famílias, nos cafés, na praia. Ao nível de imprensa, da academia, há um silêncio tumular imposto por aqueles que têm poder de decidir os destinos do país”.
O escritor iniciou o trabalho que resultou no livro ‘Racismo – O machado afiado em Angola’ no final de 2018 por considerar um livro adequado ao momento. E propõe caminhos práticos para “minimizar a quantidade de sofrimento que esses criminosos causam”, caso contrário, nota, será “a vitória da barbárie sobre a bondade”.
Actualmente Angola “está mais aberta à discussão sobre o problema das relações inter-raciais”, observou Domingos da Cruz em declarações ao mediotejo.net, negando que a oportunidade do contexto esteja relacionada com “a sucessão presidencial” mas sim com “o debate desencadeado pela sociedade civil, sobretudo em ‘espaços restritos’ como as redes sociais. “A media tradicional não acolheu o debate, um ou outro órgão ‘dissidente’ tenta amplificar esse debate mas ficou confinado às redes sociais embora com muita intensidade comparando com os anos anteriores”, afirmou, razão pela qual considera “ser o momento adequado para contribuir de tal modo que esse debate se possa aprofundar e alargar” na esfera pública.
Olhando “as experiências contemporâneas”, Domingos da Cruz opinou sobre os extremismos, sobre a intolerância, abordou o avanço da extrema-direita no mundo e considera que “os seres humanos com a História não aprendem absolutamente nada”.
Entre as razões que contribuem para o crescimento da intolerância e acentuaram as tensões em relação ao diferente, o escritor aponta ao dedo aos sistemas de educação, à comunicação social e ao quadro social e económico da Europa dos últimos 5/7 anos. “Quando olhamos, por exemplo, para o nível e grau de intolerância ‘quase por toda a Europa’, e para o quadro geopolítico global, no contexto europeu há cada vez mais pessoas fora daquilo que é o espaço de realização e de integração no mundo do trabalho”.
Por outro lado, continuou, “o sistema de educação ao longo de 30/50 anos, de acordo com alguns estudos, não foi capaz de trabalhar uma dimensão fundamental do ser humano que é a capacidade de estabelecer relações inter-raciais, vendo o diferente como uma riqueza. Pelo contrário, os sistemas de educação funcionaram como aparelhos ideológicos de reforço das identidades porque infelizmente sempre invocámos os egoísmos nacionais e as grandezas nacionais e isso inviabiliza ver o outro como uma oportunidade a partir da qual eu também posso aprender alguma coisa e enriquecer enquanto ser humano”, notou.
Para ultrapassar o problema Domingos da Cruz propõem novos sistemas de educação, essencialmente a libertadora, recusando uma educação abstracta. “Se durante décadas os sistemas de educação fizeram um percurso contrário, reforçaram as intolerâncias em relação ao outro, temos de inverter. Uma educação em que cada um de nós, independentemente da geografia onde tenha nascido, tenha plena consciência de que partilhamos a condição terrena, esta mesma humanidade”.
Por outro lado, sugere alterar as formas de comunicar. “Os meios de comunicação social de uma forma geral têm um grande poder nas pessoas, mas são produto desses sistemas de educação. Se formos capazes de formar pessoas com uma percepção diferente, provavelmente comunicarão de forma diferente o que fará uma grande diferença nas ligações inter-raciais”.
Para já, defende que as vítimas “continuem a fazer as lutas políticas a que temos assistido porque a discriminação racial é uma questão política sendo certo que se funda no poder”.
O livro ‘Racismo – O machado afiado em Angola’ mereceu apresentação de Carla Dias e Eugénia Pinheiro a uma plateia que encheu o espaço Sr. Chiado à qual deram conta de algumas das suas experiências enquanto professoras confirmando a existência de racismo em Portugal. Falaram num racismo estrutural em quase todas as esferas da sociedade, mais nas grandes zonas urbanas do que no interior do País, nomeadamente em Abrantes. E abordaram o problema em Angola que envolve brancos, mestiços e negros colocando estes últimos num patamar social inferior. À apresentação seguiu-se um debate sobre o problema do racismo e da discriminação.
Domingos da Cruz, quebrando um pouco as suas próprias regras falou, pela primeira vez, sobre os trabalhos que tem em mãos, a publicar no futuro. E desvendou ao nosso jornal que tem o romance “O Escárnio” terminado. “Escrevi-o com muitas reticências. Todos os livros anteriores são trabalhos de investigação mas sempre quis escrever literatura pura, romance, e tive a mesma sensação de quando escrevi o meu primeiro livro, porque é um género completamente novo, diferente. Não sei se valerá a pena mas está terminado e espero que seja bem acolhido. Espero escrever outros no futuro”, reflectiu.
O novo livro ‘O Escárnio’ retrata uma história política sobre “um intelectual que olha as instituições com desprezo, sobretudo os grandes líderes por entende-los como pessoas que compactuam para o estado em que tal país se encontra. O personagem lança-se numa luta inglória que passa por vários países”. Um romance ao estilo de George Orwell “mais político”, um estilo ao qual se quer dedicar e no futuro “alternar entre o romance e a pesquisa”.
Opções que não colidem com a carreira docente, aliás a concepção de professor para Domingos da Cruz é de ser pensante. “Tem de pensar e produzir conhecimento sob pena de não ser um professor. Agora preciso reencontrar o meu espaço na academia que ficou suspenso durante estes dois últimos anos. Preciso voltar a leccionar!”.
Como já recordámos, o escritor é um activista em defesa dos direitos humanos em Angola. Foi no âmbito de uma acção, em que participaram outros 16 activistas à volta de um texto de Domingos da Cruz, intitulado “Ferramentas para destruir o ditador e evitar nova ditadura – Filosofia Política da Libertação para Angola”, que foi preso e condenado pelas autoridades angolanas.
Detidos a 20 de Junho de 2015, em Luanda, os 15+2 numa referência aos 15 activistas que estiveram em prisão preventiva entre Junho e Dezembro de 2015 e de mais duas jovens que, juntamente com os restantes, foram condenadas a penas de prisão efectiva em Março de 2016, por actos preparatórios para uma rebelião e associação de malfeitores.
Os 17 acabaram por ser libertados em Junho de 2017, depois de o Tribunal Supremo decidir a favor do ‘habeas corpus’ apresentado pela defesa pedindo a libertação por prisão ilegal, tendo sido entretanto abrangidos por amnistia presidencial para crimes – excluindo os de sangue – cometidos até 11 de Novembro de 2015.
Domingos da Cruz nasceu em 1984 em Angola, é graduado em Filosofia e Pedagogia pelo Instituto Dom Bosco de Estudos Superiores, em Angola, e mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal de Paraíba, no Brasil. Jornalista, investigador e professor, venceu em 2009 o Prémio Nacional dos Direitos Humanos, atribuído pela Open Society na categoria Ricardo de Melo, que distingue os jornalistas. O livro tem a chancela da RCP Edições.
Introdução integral
Embora a genética e a biomedicina tenham demonstrado que não existem raças, há a raça humana, isto não foi o suficiente para que os criminosos racistas abandonassem as suas práticas. Tudo o resto – taxonomia e hierarquização − são construções sociopolíticas e históricas com vista a dominar, a controlar e a manter privilégios. Ainda assim, na vida diária, a realidade confirma que a raça enquanto categoria mental determina se podemos conseguir ou não um emprego, se seremos ou não aceites como namorado/a numa família, se seremos ou não avaliados como competentes ou incompetentes. A nossa herança cromática conta. E influencia muito! (…).
Falar sobre a racialidade na Angola dos nossos dias, pressupões evocar a etiologia da questão, mesmo que não queiramos. A evocação de uma arqueologia histórica do racismo, ajudar-nos-á a compreender porquê chegamos aqui, e porquê estamos assim neste quesito. Assim em relação a quê? Dir-se-á adiante!
O núcleo do debate aqui proposto é a operacionalização do racismo hic et nunc. Na Angola de hoje. Temos consciência sobre a sua complexidade, e os corolários vinculados a esta complexidade: por exemplo, as paixões que esta questão desperta; as incompreensões, a confusão no plano epistémico com consequências na relação interpessoal e na narrativa que é vertida para a esfera pública.
Uma análise sobre a questão a que nos propusemos, em virtude da sua complexidade, da sua “intermultidisciplinariedade”, impele-nos a ler as seguintes dimensões da racialidade: sociológica (constitui prioridade para este trabalho), histórica (possui as bases fundantes igualmente sine qua non para compreendermos o estágio em que estamos). Tendo em consideração o contexto, tanto a vertente sociológica quanto a histórica cruzam com inevitáveis fragmentos da dimensão política do problema. A partir daqui o problema é escorregadio. Sai dum plano e torna-se cíclico. Dai a complexidade. No nosso entender, um olhar unidireccional torna-o ininteligível. Só uma análise que vê as partes, mas também o todo, poderá ter uma compreensão mínima e útil sobre o problema racial em Angola.
Um debate plurivocal sobre a questão racial, constitui sinal de responsabilidade e amadurecimento de quem pretende um projecto de nação alicerçado na democracia participativa, que convoca consequentemente a deliberação como condição para a legitimação de qualquer política e opção na condução da nação. Aliás, qualquer debate que se quer sério sobre a construção de uma sociedade aberta em Angola, independentemente da sua proveniência ideológica, deve convocar a questão racial como necessária.
A sociedade angolana está marcada por inúmeros silenciamentos — silêncio sobre a primeira colonização do povo Bantu contra os povos Kung, silêncio sobre o 27 de Maio, silêncio sobre a sexta-feira sangrenta e outros massacres, silêncio referente a personalidades chaves para Angola, silêncio sobre o papel da mulher na construção de Angola como a conhecemos — entre muitos outros silêncios está a questão racial. Nestes silêncios, jogou papel essencial as opções políticas do grupo hegemónico.
Os angolanos que nasceram na era do Estado pós-colonial, mesmo que não tenhamos responsabilidade directa sobre os silêncios em relação a muitas questões importantes, para o nosso amadurecimento enquanto país (ele mesmo resultante de nações em convívio), devemos fazer diferente: “disparar o tiro inicial responsável” (reafirmo: responsável), para a discussão sobre o racismo, dando as boas-vindas às personalidades das gerações anteriores a nossa, que reconhecendo o erro do silêncio que presidiu a sociedade até aqui, desde que estejam abertas para lançar mão a esta empreitada com a sua visão de mundo. Encontros de perspectiva que enriquecerão o debate e o tornarão melhor, certamente.
Não se pretende atribuir a este projecto o status de ser o ponto de partida da discussão sobre o racismo em Angola. O problema se colocou entre aqueles que lutaram para a independência de Angola. Foi amordaçado no estágio embrionário!
Holden Roberto, Barreiras Freitas, Daniel Chipenda, Nito Alves, estão entre aqueles que terão insistido numa narrativa sobre a questão racial em Angola. Sabemos qual foi a sorte deste último. Nem direito ao sepultamento teve. Sua família, desde 1977 não obteve a certidão de óbito. Aqueles que nos precederam, têm o seu mérito. Mas, nós gostaríamos de relançar o debate noutros moldes: queremos relançar uma análise fora da lógica panfletária; pretendemos uma “discussão responsável” dentro de um quadro geral de um projecto de nação que seja democrático. Propomos essencialmente um debate ético, propedêutico, tendo como preocupação central a dignidade das vítimas passadas, presentes e futuras possíveis, para que se possa ter uma sociedade digna das exigências civilizacionais do mundo contemporâneo, no que o quesito ralação inter-racial e multicultural dizem respeito.
Fonte: mediotejo.net